Fazia dez anos que João Moreira Salles não lançava um filme. Na época da estreia de Santiago (2007), o documentário sobre o mordomo da família na casa da Gávea que hoje abriga o Instituto Moreira Salles e sobre sua dificuldade de concluir um filme sobre ele, o diretor declarou que não sabia se voltaria ao cinema. Mas voltou – e ainda bem. O belo No Intenso Agora, que tem sua estreia mundial na seção Panorama Documentários do 67º Festival de Berlim, foi feito a partir de filmagens feitas por sua mãe durante uma viagem à China em 1966, quando o país de Mao Tsé-tung passava pela Revolução Cultural.
Com a ajuda dos montadores Eduardo Escorel e Laís Lifschitz, o diretor alinhava esses registros com cenas de arquivo de outros momentos fundamentais dos anos 1960, mais precisamente de 1968: os protestos operários e estudantis em Paris, a invasão soviética depois da Primavera de Praga e o enterro do estudante brasileiro Edson Luís, assassinado por policiais no período de endurecimento da ditadura militar. Ele analisa as imagens, dando-lhes sentidos novos. Observa, por exemplo, que os negros estão sempre na periferia das cenas filmadas de Maio de 1968 em Paris. Ou que não se vê ninguém sofrendo na procissão e funeral de Edson Luís, que deixou de ser pessoa para virar apenas símbolo. Investiga o que as imagens dizem, por querer ou sem, e o uso político que se faz delas. Trata-se, no fundo, de uma peça filosófica.
Mas não apenas, porque não lhe falta emoção. O filme também fala do que se faz quando a paixão vai embora, e a vida segue seu curso normal. Como encontrar uma razão para viver? Muitos dos envolvidos naquelas revoluções que não foram, ou que foram e arrefeceram, não aguentaram o peso das coisas normais. Jogaram-se na frente de trens, atearam fogo em seus corpos.
Como em Santiago, há algo de muito pessoal em No Intenso Agora. A mãe do cineasta, Elisinha Moreira Salles, também perdeu a alegria de viver em 1988, o que é abordado de maneira muito sutil. “Há certas coisas que não precisam ser ditas explicitamente. É violento demais. Mas eu acho que está dito. Está dito de maneira delicada”, diz Moreira Salles ao site de VEJA. “A imagem dela aparece depois da imagem do rapaz que escreveu o slogan ‘Debaixo do paralelepípedo, a praia’ e se atirou embaixo do metrô. Então tenho a impressão de que não preciso dizer. Seria para mim doloroso demais, espetaculoso demais.” João Moreira Salles concorda com o cineasta Eduardo Coutinho (1933-2014), seu grande amigo, a quem dedica o filme, que é preciso respeitar as pessoas que estão sendo documentadas. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Na época em que lançou Santiago, você disse que talvez não fizesse mais filmes. O que o levou a voltar? A vontade de dizer algumas coisas que não estavam claras para mim naquele momento. E é um pouco essa ideia de “o que vem depois quando as coisas fortes passam”, sabe? Como viver depois disso? É uma questão que sempre está na minha cabeça. Como dar sentido à vida quando ela é banal, quando entra nos eixos do cotidiano. Que é, basicamente, onde a gente vive. A gente não vive nas três semanas de maio, a gente não vive durante a Revolução Cultural, a gente não vive eternamente apaixonado. Aí esses dez anos passaram, o (Eduardo) Coutinho morreu, e coisas que eu conversava com ele sobre documentário, sobre cinema, ficaram repercutindo na minha cabeça. Sobre a natureza das imagens, sobre como pessoas morrem e são usadas politicamente, não morrem como indivíduos, morrem como símbolos. Que tipo de custo isso tem. Tudo isso começou a meio que parecer que fazia parte da mesma questão. Chegou uma hora em que comecei a ler sobre os períodos essencialmente tratados no filme: Revolução Cultural, Maio de 1968, Primavera de Praga. E percebi que havia de fato denominadores comuns sobre a grande dificuldade de viver depois desses momentos de extraordinária intensidade. Aí entrei na ilha de edição.
Em algum momento você achou que sua paixão por fazer cinema tinha acabado? Eu nem me considero um cineasta. Nunca foi uma vocação, foi mais um acidente. Mas, a hora da feitura, de mexer no barro, na ilha de edição, é uma coisa que justifica você acordar de manhã, ir para um lugar, conviver com pessoas de quem gosto muito, o Escorel e a Laís. E tudo isso me devolveu uma alegria em relação, não ao cinema de modo geral, mas a fazer cinema. O trabalho real. E acho que para mim é isso o que conta, mais do que qualquer outra coisa. Conta também o fato de que, neste caso específico, o cinema me dá a possibilidade de dar forma a algumas ideias que estão muito pouco claras na minha cabeça. Ele informa coisas que são vagas. E isso me ajuda a organizar dúvidas, ansiedades e tal, o que é sempre bom, eu acho. É uma maneira de pensar cinema para mim. Não é a única que eu tenho, mas é uma das maneiras de pensar sobre questões importantes para mim. E nesse sentido, de novo, não estou dizendo que não vá voltar a fazer cinema, mas só voltarei se alguma coisa semelhante tornar a acontecer, se eu tiver vontade de pensar em alguma coisa e achar que é o cinema que vai me guiar nesse processo.
Mas nesse processo chega a alguma conclusão? Não necessariamente. Mas ajuda a dar nome a coisas, sabe? Francamente eu não sei que pergunta teria sido respondida por este filme. Mas também não sei se é função do cinema que eu admiro, de que gosto, responder a perguntas específicas. Eu não faço um cinema que tem alguma ambição de atuar no mundo. É mais o fato de refletir sobre ele. E levantar mais dúvidas. A questão que está posta no filme e não está necessariamente respondida, porque cada pessoa encontrará sua resposta, é da crucial importância de encontrar razões para viver. Que não estão dadas antes de você construí-las, entende? E principalmente depois de passar por momentos em que parecia que o sentido estava dado. Quando você está nas três semanas de Maio de 1968, não tem nenhuma dúvida de por que está vivo e que existe uma razão, existe uma coisa que te guia, que te faz querer existir. Quando você está resistindo aos tanques, a mesma coisa. Mas vem o fim disso, e as pessoas entristecem. Aí algumas, no limite do limite, não encontram razão para continuar e se atiram embaixo do metrô. O que evidentemente não é uma solução, é um desespero. É uma solução desesperada, mas não é uma solução que deveria ser admitida. Esta que é a grande pergunta: como dar sentido à vida depois que a intensidade passa. Porque, enfim, é onde a gente vive. A gente não consegue viver intensamente sempre.
Nesse sentido, você falou no debate com o público aqui em Berlim sobre os protestos no Brasil em 2013, que sabia que uma hora iam passar. Acha que as revoluções ainda são possíveis? Depende de que revolução. Uma revolução clássica, em que a ordem é posta abaixo e outra se ergue, acho muito difícil. Não está no horizonte das possibilidades neste momento. Mas uma resistência à imposição de uma ordem antidemocrática, antiliberal, injusta, autoritária, sem dúvida nenhuma. Eu acho que esta é a lição de Maio de 1968. Porque eles fracassaram no objetivo final – se é que eles eram de fato revolucionários, é uma grande questão. Mas De Gaulle se manteve no poder. Pelo menos naquele momento ele se manteve no poder. A ordem foi restabelecida. De certa maneira eles foram derrotados. Mas havia elementos libertários que não faziam parte da agenda específica da geração de 1968 que se impuseram e trouxeram avanços civilizatórios: o movimento feminino, o das minorias, liberalização sexual, afrouxamento das relações hierárquicas. Tudo isso é uma contribuição da geração de 1968. A França se tornou menos autoritária por causa de 1968. Acho que revoltas são possíveis, sou cético em relação às revoluções hoje em dia. Em relação a 2013, a agenda não era muito clara e se extinguiu muito rapidamente. Mas tenho a esperança de que, assim como em 1968 coisas que não eram explicitadas, mas que estavam no bojo do movimento, acabaram se impondo na sociedade, algo disso pode estar em curso em relação ao que aconteceu no Brasil em 2013. Alguma coisa se manifestou ali, ainda sem nome, ainda para ganhar forma, mas que pode, daqui a cinco, dez anos, você olhar para trás e dizer: conquistei isso por causa daquilo.
Você diz que o filme foi feito na sala de edição, com o Eduardo Escorel e a Laís Lifschitz. Mas como fazer, com essa quantidade gigantesca de material? Levei uns quatro anos para fazer o filme. Durante os primeiros dois anos e meio, trabalhei só com a Laís. Ela tinha acabado de sair da faculdade de cinema, era o primeiro filme dela. E eu trabalhava com ela tentando organizar o material. Vendo o material. Por exemplo, a coisa de os negros estarem sempre na periferia em Paris: aquilo só vem à tona quando você vê o material 20, 30, 40 vezes. Aquela imagem do início, aquela sequência da família brasileira, em que você vê a babá se afastar para não ser filmada, aquilo não é uma intuição de primeira. Aquilo você viu dez vezes e está com o olho apurado para identificar o que está acontecendo fora do centro da imagem. Aí eu fiz um corte de 5 horas e meia e dei para o Escorel. Perguntei: Tem algum filme aqui? E o Escorel disse que tinha. Ele entrou na ilha de edição. As coisas foram ficando mais concretas. De fato, não é um filme que existe antes do processo de meter a mão na massa. O processo de pensamento, a ideia vai surgindo de lidar com o material. É só por isso que o filme existe. Não tinha roteiro. O roteiro vai nascendo do trabalho. E assim se chega ao filme.
O texto, sua narração, você escrevia diariamente? Sim. E gravava ali mesmo, para ver se funcionava, se não funcionava. Jamais foi escrito do início ao fim de uma sentada só. Ele é uma porção de pequenos trechos escritos ao longo de dois, três anos.
Durante a primeira sessão em Berlim, você falou que Santiago é um filme sobre o pai. Por quê? A casa foi feita pelo meu pai. Santiago trabalhava essencialmente para meu pai. Meu pai era a grande referência para o Santiago, eu acho. No final tem um poema sobre o pai, sobre o mato que está crescendo, sobre as cinzas do meu pai na casa. Então aquele lugar é essencialmente, na minha cabeça, o lugar do pai. E este é um filme essencialmente sobre minha mãe. Quando a gente foi morar na França, meu pai ficou no Brasil. A gente foi para lá em 1964, por causa do golpe. Papai tinha sido ministro do Jango, e ele achou que pudesse ter algum tipo de repercussão para a família. Então a gente foi para lá (a família voltou com os distúrbios de 1968). A minha lembrança da França, que é muito tênue, porque eu era muito pequenininho, é uma imagem de uma França com mamãe. Mas não com o pai.