“Ignoraram a vontade dele”, diz neto de Graciliano sobre novas edições
Ricardo Ramos Filho dispara contra a publicação de textos que o avô pediu para nunca virem à luz, apesar de, por lei, terem caído em domínio público
Por que se irritou com o lançamento de escritos inéditos de seu avô? Não está tudo de acordo com a lei? Sim, mas antes de morrer, quando estava bem doente, meu avô deixou claras instruções a meu pai, Ricardo, sobre quais textos não deveriam jamais vir a público. Ele disse e meu pai anotou, em papel que temos guardado: “Se assinei com o meu nome, pode publicar. Já com pseudônimo, não. Não sobra uma linha, não deixe sair. E, pelo amor de Deus, poesia, nunca. Foi tudo uma desgraça”. Aí a primeira coisa que fizeram foi justamente publicar um livro de poemas sob pseudônimo. Só pensaram nos negócios.
Mas a editora tinha como saber? A carta é pública. Ela inclusive aparece em um livro do meu pai.
Chegou a tentar evitar essa nova publicação? Só fiquei sabendo dela quando já estava nas livrarias. Depois, procurei uns políticos para abrir um debate sobre mudanças na lei. Como as pessoas agora vivem mais, acho que os direitos autorais deveriam ser preservados até 95 anos após a morte do artista, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. Mas a conversa não despertou interesse. Pena. No caso de Graciliano, mesmo dentro da legalidade, foi absolutamente antiético ignorar sua vontade.
Em que medida a lei é útil à cultura? O livre acesso a uma obra contribui para a divulgação do autor e para pesquisas sobre ele. Por isso, defendo que fiquem na internet, até antes do período previsto hoje. Com o livro impresso, é outro papo. Ele não se torna mais barato. Quem ganha são apenas as editoras, que substituem a família como herdeiras do autor.
Como escritor, o intimida ter Graciliano Ramos como avô? Claro. Fiz carreira na área de exatas para fugir desse destino. Tinha certeza de que, sendo escritor, me comparariam o tempo todo a ele. Mas, mais maduro, a vocação falou mais alto do que a insegurança. E, aos 38 anos, finalmente publiquei meu primeiro livro, uma obra infantil, exatamente para evitar comparações. Também engatei mestrado e doutorado sobre a obra de Graciliano.
Ele o inspira? Sem dúvida. Morreu meses antes de eu nascer, mas minha avó se referia a ele como super-herói, dono de um humor ácido. Uma vez, um engraxate lhe perguntou: “Quais são as novas, grande amizade?”. Ao que respondeu: “Nossa grande amizade”. Graciliano era assim. Aos 16, a leitura de Vidas Secas foi transformadora para mim. Sempre o amei a distância.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877