No dia 17 de setembro de 1925, Frida Kahlo (1907-1954) foi vítima de um grotesco golpe do destino. Aos 18 anos, ela saiu da escola e entrou em um ônibus rumo a Coyoacán, região da Cidade do México onde vivia com a família. Ao notar que tinha perdido o guarda-chuva, desceu para procurá-lo e, em seguida, subiu em um segundo ônibus. Minutos depois, o veículo colidiu com um bonde. Diversos passageiros morreram na hora. A situação de Frida era gravíssima. A jovem que sonhava ser médica sofreu múltiplas fraturas na perna e na coluna, quebrou a clavícula e teve órgãos afetados por uma barra de metal que a atravessou pelo abdômen e saiu pela pelve. Submetida a dezenas de cirurgias, lidou com sequelas por toda a vida. Mas Frida subverteu a tragédia: nos meses em que ficou presa à cama, começou a pintar. O que veio depois disso é história — ela se transformaria em uma das artistas mais populares do século XX.
O acidente é um dos episódios revisitados pelo documentário Frida: Viva la Vida, que vai ao ar na segunda-feira 8, às 17 horas, no canal National Geographic. O filme dirigido por Giovanni Troilo esmiúça a obra de Frida a partir de sua relação com a dor, enquanto trafega pela cultura do México e pelo processo histórico que a converteu em um ícone do feminismo pop. Tal febre ganhou até nome: “Fridamania”. Com grossas “monocelhas” (as sobrancelhas unidas), penteados ornados com flores e roupas coloridas inspiradas nas matriarcas do estado mexicano de Oaxaca, a artista produziu autorretratos à exaustão, transformando a si mesma em obra de arte. Como resultado, transcendeu a mera imagem de pintora para se tornar um símbolo poderoso. Seu rosto estampa camisetas e bolsas. Beyoncé já se vestiu como ela. A conservadora ex-primeira-ministra inglesa Theresa May foi fotografada com um bracelete com fotos da mexicana — que, vejam bem, era comunista. Prova definitiva de sua popularidade, Frida inspirou uma versão da boneca Barbie.
Poucos sabem, porém, que os looks chamativos eram mais do que uma forma de externar sua personalidade: eles tinham a função prática de esconder os traumas físicos. As blusas largas ocultavam um colete ortopédico. As saias volumosas camuflavam as cicatrizes do acidente e uma diferença de tamanho entre as pernas, herança da poliomielite que a acometera aos 6 anos. Já as pinturas escancaravam as mesmas agruras, combinando-as com suas paixões, que iam do rosto do marido, o muralista Diego Rivera (1886-1957), aos animais que criava em casa (ela tinha macacos e até um cervo), passando pelos abortos que sofrera e as dores crônicas. O quadro A Coluna Partida, feito em 1944 após uma cirurgia na espinha, mostra o tronco de Frida perfurado por pregos e a coluna exposta em frangalhos. “Pensaram que eu era surrealista, mas nunca fui. Só pintei minha realidade”, diria ela.
A temática contundente ajudou a construir a fama de feminista. “Se você traiu ou foi traída, sofreu um aborto, sentiu dores, se divorciou, pode se identificar com ela, que era apenas uma mulher como outras”, diz Cristina Kahlo, sobrinha-neta de Frida. Fotógrafa e curadora de mostras da pintora, Cristina cresceu ouvindo sobre a “tia divertida e festeira” que morrera antes de ela nascer. Aos 10 anos, conheceu A Coluna Partida e passou a ver Frida por outro prisma. A fotógrafa reforça a opinião emitida pelo documentário: Frida era uma mulher livre e feminina, mas não feminista. “Ela dependia de homens, financeira e emocionalmente”, analisa.
Os muitos romances de Frida com homens e mulheres — entre eles o bolchevique Leon Trotski — não se igualavam à paixão quase obsessiva que nutria por Rivera. Marido e tutor, o muralista já era famoso quando se casou com Frida. Ele gostava de exibi-la em viagens pelo estilo exótico da esposa, que atraía fotógrafos. Em sua primeira exposição em Nova York, em 1938, Frida foi apresentada pela imprensa como “madame Diego Rivera”.
O reconhecimento que a faria suplantar a fama do marido veio nos anos 80, com o livro Frida — A Biografia, de Hayden Herrera, que foi abraçado por feministas imigrantes nos Estados Unidos. É no começo do século XXI que a artista se torna onipresente, com exposições mundiais com filas gigantescas. A Casa Azul, onde ela cresceu e morreu, virou o ponto turístico mais visitado do México. Em 2004, a residência revelou uma surpresa. Cômodos fechados havia cinquenta anos foram abertos, e lá estavam acessórios, roupas, aparatos ortopédicos e até uma prótese da perna direita de Frida — que foi amputada um ano antes de sua morte, por embolia pulmonar, aos 47 anos. Os aparelhos que lembram instrumentos de tortura, somados a itens de uso pessoal como frascos de esmalte pela metade, agora são relíquias indefectíveis. Tudo o que é tocado pela “Fridamania” parece ganhar vida própria.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728