Enquanto um incêndio consumia o galpão da Cinemateca Brasileira na noite de ontem, a dupla responsável pela administração do patrimônio cultural brasileiro – o ministro do Turismo, Gilson Machado, e seu subordinado que cuida especificamente da área, o secretário Mario Frias – estava em Roma. A distância de ambos da tragédia era apenas circunstancial, em razão de uma agenda oficial. Mas o detalhe não deixa de ser um símbolo forte: afinal, onde estão os problemas da cultura nacional, dos museus em crise a patrimônios ameaçados como o acervo da Cinemateca, não se verá a presença assertiva do governo Bolsonaro.
A presença da gestão de Machado, sanfoneiro das lives presidenciais, e do ex-Malhação Frias, vem tarde – quando muito. O governo federal publicou somente nesta sexta-feira, 30, um edital para escolha de uma “entidade privada sem fins lucrativos” que deve gerir o órgão por cinco anos. A publicação do chamamento público era uma promessa feita pela Secretaria Especial de Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo, para preservação da Cinemateca, e deve ter uma resolução até 27 de outubro deste ano.
Mas ocorre que, oficialmente, a Cinemateca Brasileira está sem gestor desde 31 de dezembro de 2019: na época, o então ministro da Educação Abraham Weintraub anunciou que não iria renovar o contrato com a administradora, a organização social Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp). Desde o fim da licitação, a instituição vinha sendo mantida de forma improvisada pela equipe técnica da Acerp, que continuou a trabalhar mesmo sem recursos e salários, até Mário Frias assumir, sete meses depois, a Secretaria Especial de Cultura e exigir a devolução das chaves da Cinemateca.
Nas mãos do governo federal, a entidade – tanto sua sede principal, na Vila Clementino, quanto o galpão na Vila Leopoldina – estava largada à própria sorte. Em julho do ano passado, o Ministério Público Federal apresentou uma ação civil contra a União, sob a alegação de “estrangulamento financeiro e abandono administrativo”. Assinado pelo procurador Gustavo Torres Soares, o documento dizia que a Cinemateca corria risco sério e iminente de danos irreparáveis por omissão e abandono, já com o alerta de que os “filmes em nitrato de celulose poderiam entrar em combustão espontânea e ocasionar incêndio”. Um acordo judicial entre as partes, porém, colocou o processo em suspenso em 12 de maio deste ano, uma vez que representantes do governo Bolsonaro se comprometeram em iniciar os trâmites da nova licitação em até 45 dias. A data venceu no final de junho, sem que um edital fosse publicado.
Há dez dias, uma nova audiência aconteceu na 1ª Vara Federal Cível de São Paulo. O MPF voltou a alertar o governo federal sobre as condições precárias da Cinemateca e também sobre o risco de incêndio do acervo, e mais 60 dias foram concedidos para que a União desse continuidade às ações de preservação. Não deu tempo.
Nas redes sociais, o secretário Mário Frias, respondendo a uma crítica do deputado Paulo Pimenta (PT-RS), repetiu o surrado mote do bolsonarismo: a culpa é do PT. “O estado que (sic) recebemos a Cinemateca é uma das heranças malditas do governo apocalíptico do petismo, que destruiu todo o estado para rapinar o dinheiro público e sustentar uma imensa quadrilha de corrupção e sujeira criminosa”, escreveu no Twitter. A despeito do debate sobre os males causados ao país pelas gestões petistas – e foram muitos e reiterados -, o tuíte de Frias, endossado por ataques também de seu chefe Machado, soa é como desculpa esfarrapada. O país não está nas mãos do PT desde 2016 – e, em seus quase três anos já no poder, o governo Bolsonaro vem executando uma política para muitos deliberadamente destrutiva – ou, no mínimo, inepta – no trato do setor cultural – o qual Frias e os bolsonaristas acusam de abrigar “comunistas”.
Pedro Peixoto, ex-secretário nacional do Audiovisual no próprio governo Bolsonaro – ou seja: alguém que é tudo, menos “comunista infiltrado” – , contou a VEJA que já era conhecidíssima a situação precária em que se encontrava o acervo da Cinemateca na Vila Leopoldina. Durante sua gestão, de fevereiro a julho de 2019, ele enviou um memorando à chefia da secretaria de Cultura pedindo um orçamento maior para a Fundação Roquette Pinto (Acerp), que cuidava da manutenção do acervo. A resposta não só não veio, como no fim do ano o governo federal decidiu romper o contrato com a fundação.
“Foram questões políticas, uma briga entre a Roquete e o ministro da Educação (no caso, Abraham Weintraub). Não precisava aumentar, mas pelo menos manter (os valores). O caso ainda caiu no meio de um limbo”, diz ele. Os contratos firmados com a Secretaria da Cultura eram vinculados aos do MEC. Quem assumiu a gestão, então, foi o governo – senão na prática, pelo menos no papel. “Depois, se especulou sobre a ida da Regina Duarte (para dirigir a Cinemateca), mas isso não aconteceu. E aí, como é de hábito, se empurrou com a barriga até vir o incêndio”, acrescentou.
“Essa tragédia anunciada tem que servir como um marco, como um chega. Tem de cessar as brigas e começar a fazer gestão, até porque o incêndio aconteceu no primo pobre da Cinemateca (o da Vila Leopoldina), mas o primo rico (o da Vila Mariana) também está ameaçado”, afirmou o ex-secretário. “Já havia uma preocupação de tirar aquele acervo dali. É uma tragédia. Aquele lugar não tinha condições nenhuma de armazenar um material tão rico e importante da cultura brasileira”, completa Peixoto.
O resultado do descaso escandaloso não é visível apenas nas perdas trágicas de patrimônio cultural: o incêndio na Cinemateca já virou motivo de vexame internacional. Em resposta à “tragédia anunciada”, a Federação Internacional de Arquivos de Filmes (International Federation of Film Archives) publicou uma nota pesarosa que condena a gestão da União. “É impossível não vincular os diversos desastres que causaram graves danos às instalações e acervos da Cinemateca Brasileira nos últimos anos à flagrante falta de apoio financeiro e institucional que a Cinemateca experimentou do governo brasileiro no mesmo período”, diz o texto. “Mais uma vez, apoiamos nossos colegas de São Paulo e exortamos o governo brasileiro a intervir imediatamente para garantir que a Cinemateca Brasileira volte a operar e a cumprir suas missões culturais essenciais, como o fez de maneira brilhante por 70 anos. Antes que seja tarde demais.” Amém.