Aos 15 anos, Anne Frank travava uma luta entre seus dois lados: a Anne “jovial” e a “quieta”. Seria uma crise típica da adolescência, não fosse uma agravante: a garota estava trancada havia 25 meses com seus pais, Otto e Edith, a irmã Margot e mais quatro pessoas no fundo de um prédio em Amsterdã — escondidos na tentativa de escapar das atrocidades nazistas na II Guerra. O isolamento já lhe dava nos nervos, e seu lado melancólico vinha vencendo o jovial. Esse foi o tema do último texto da garota, datado de 1º de agosto de 1944, no incontornável best-seller O Diário de Anne Frank. Três dias depois, em 4 de agosto, por volta de 10 horas, um carro da SS, a polícia nazista, parou diante da empresa de temperos de Otto, fachada do Anexo — como o esconderijo era chamado. A invasão foi movida por um telefonema recebido pelo Alto Comando alemão. Os presos foram enviados a campos de concentração. Só Otto sobreviveu. Ao fim da guerra, ele tinha um objetivo: descobrir a identidade do delator do Anexo. O mistério, que passou por duas investigações oficiais na Holanda, em 1947 e em 1963, nunca fora resolvido. Até agora.
O Diário de Anne Frank em quadrinhos
Em 2016, o cineasta holandês Thijs Bayens deu início a um projeto investigativo sobre o caso com o intuito de produzir um documentário, resultando antes no livro Quem Traiu Anne Frank?, que chega ao Brasil em fevereiro pela HarperCollins. O plano era usar o caso famoso como um alerta para os perigos do aumento da xenofobia e de movimentos nacionalistas na Europa hoje. A pesquisa foi além: histórias de outras famílias se cruzaram na emaranhada trama da investigação, revelando desde antepassados que ajudaram os nazistas até respostas para filhos de sobreviventes sobre os delatores de seus parentes. Isso graças à descoberta de quase 1 000 recibos de pagamentos feitos a colaboradores, que ganhavam cerca de 50 dólares (em valores atuais) por judeu entregue aos nazistas — uma velha teoria até então sem evidência cabal.
A reabertura do caso foi uma tarefa hercúlea, que contou com especialistas de qualidades e nacionalidades distintas, e ganhou forma sob a liderança do americano Vince Pankoke, 64 anos, um ex-agente do FBI. As sete décadas que os separavam do ocorrido foi um complicador e tanto. As testemunhas haviam morrido e a cena do crime, a Casa Anne Frank, virou um ponto turístico com 1,2 milhão de visitantes ao ano. Foi essencial, então, a ajuda da empresa holandesa Xomnia, que desenvolveu uma plataforma de inteligência artificial e catalogou 7 500 documentos, criando uma monumental rede de dados. “Teríamos demorado mais alguns anos sem esse programa”, contou Pankoke a VEJA.
Uma teoria bem conhecida sustentava que algum dos vizinhos do Anexo teria entregue o grupo ao notar a movimentação dos confinados. Ao mapear a região, catalogando simpatizantes dos nazistas, delatores e oficiais da Gestapo, a equipe teve um choque. “A tela do computador se encheu de inimigos ao redor do Anexo”, diz o agente. Para analisar essa e outras teorias, estabeleceu-se um axioma policial em três tópicos: conhecimento, motivo e oportunidade. O principal suspeito das duas investigações oficiais, Willem van Maaren, funcionário do armazém que não estava envolvido com os cuidados do esconderijo, foi descartado por Pankoke ao não se encaixar em dois quesitos. Mesmo tendo o conhecimento (ou a desconfiança) de que havia pessoas no fundo do prédio, ele não teria motivo para delatá-las, já que a empresa fecharia e ele perderia o emprego, e não teve a oportunidade, pois estava com os demais funcionários quando o telefonema da delação foi feito. Também não há indícios de que teria acesso a um contato de respeito entre os alemães. Tal detalhe, aliás, é uma pista notável. Ao contrário da maioria das prisões de judeus, comandadas por holandeses, o Anexo foi invadido por um militar alemão a mando de um comandante de alta patente. O delator, portanto, era alguém influente.
Ficou sob a responsabilidade da canadense Rosemary Sullivan, autora do livro, organizar e dar sentido ao robusto material. O lançamento do título fora do Brasil nesta semana foi bombástico, espalhando o resultado da investigação. Como em muitas outras situações que envolvem violência e traição, o perigo veio de dentro. Ao que tudo indica, um membro do conselho judaico holandês, o tabelião Arnold van den Bergh, entregou o endereço do Anexo para livrar a própria família da morte (era uma prática comum na Holanda pressionar judeus bem relacionados com a cúpula do nazismo para dedurar pessoas escondidas em troca de proteção). Há indícios de que, tempos depois, Otto descobriu seu traidor, mas manteve o segredo para não fomentar o clima antissemita. Pankoke diz que não julga Arnold, mas, sim, os nazistas. Faz sentido. Afinal, são eles os verdadeiros culpados pela morte de Anne Frank e de 6 milhões de judeus.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.