É famosa a frase atribuída ao inglês G. K. Chesterton segundo a qual “quando um homem deixa de acreditar em Deus, ele não passa a acreditar em nada – passa a acreditar em qualquer coisa”. Em certo sentido, o mais recente livro do filósofo John N. Gray, Sete Tipos de Ateísmo (Record), é um registro interessante das coisas em que os seres humanos são capazes de acreditar no lugar da religião e de Deus. Como afirma Gray, o livro não tem o propósito de converter ninguém ao ateísmo – muito menos, de conduzir quem quer que seja a alguma fé. Trata-se, isso sim, de mais um elegante e prazeroso ensaio do autor de Cachorros de Palha (2002) e Missa Negra (2007), livros com os quais o erudito professor de Filosofia Política na Universidade de Oxford e, posteriormente, na London School of Economics tornou-se um best seller mundial, alcançando um tremendo público que seus excelentes trabalhos acadêmicos nunca teriam sido capazes de alcançar.
É nesse espírito de diálogo com o grande público que Sete Tipos de Ateísmo chega ao leitor brasileiro. Com agilidade e clareza jornalísticas, Gray apresenta os ateísmos que pretende analisar: o “novo ateísmo” militante de nomes como Richard Dawkins e Sam Harris; o “humanismo secular”; o ateísmo que transforma a ciência em religião; as religiões políticas modernas (do jacobonismo ao nazismo e comunismo); o ateísmo dos que odeiam Deus (exemplificado pelo Marquês de Sade, entre outros); o ateísmo de Joseph Conrad, que rejeita a ideia de um Deus criador; e, por fim, o ateísmo místico do pensador alemão Arthur Schopenhauer.
Ao se lançar à escrita para o grande público, saindo dos círculos mais estritos da academia, Gray levou consigo algumas importantes marcas do trabalho como filósofo político que tinha realizado durante mais de 20 anos nas prestigiadas universidades inglesas. Discípulo do grande pensador Isaiah Berlin (a respeito de quem escreveu uma excelente biografia), interlocutor muito próximo de Michael Oakeshott (de cuja obra é grande conhecedor), o autor de O Silêncio dos Animais estudou meticulosamente a política da Europa moderna, isto é, dos últimos 400 anos – em suma, a política que nos legou as democracias liberais, constitucionais e representativas, mas também as grandes ideologias totalitárias do nazi-fascismo, à direita, e do comunismo, à esquerda. E se há um elemento que Gray soube identificar na política moderna é seu caráter de sucedânea da fé em Deus e das religiões reveladas instituídas, centrais na vida espiritual, mas também na vida pública, política, da Europa até poucos séculos atrás – tema presente em inúmeros de seus livros e ensaios para a imprensa, sobretudo em Missa Negra. Sai Deus, entra o “progresso humano”.
Não por acaso, o melhor do livro Sete tipos de Ateísmo está justamente no capítulo 4, aquele em que Gray se dedica a analisar o quarto tipo de ateísmo de sua lista de sete: “As religiões políticas modernas, do jacobinismo ao liberalismo evangélico contemporâneo, passando pelo comunismo e pelo nazismo”. Reconhecendo o perfil de fanatismo crédulo e inclinado à violência em nome da doutrina que todas essas variedades de movimentos políticos compartilham, Gray vê na raiz desse modo de compreensão da política o milenarismo:
“Os movimentos revolucionários modernos são continuações do milenarismo medieval. O mito de que o mundo humano pode ser refeito em uma reviravolta cataclísmica não morreu. Mudou apenas o autor desse fim dos tempos transformador do mundo. Nos velhos tempos, era Deus. Hoje, é a humanidade”.
Da “Ordem de Enforcamento” de Lenin, de agosto de 1918, em que o revolucionário russo instruía os bolcheviques a executar por enforcamento os camponeses que resistissem à política de confisco de grãos, “para que a população possa ver e temer”, à delirante convicção do artista Kazemir Malevich, para quem “a morte de Lenin não é morte, ele está vivo e é eterno”, é difícil não reconhecer as similaridades com a religião na estrutura de pensamento e nas práticas políticas historicamente comprovadas. Entretanto, pouco do que vem nesta análise é novo, e o leitor dos livros anteriores de Gray sairá com a sensação do déjà-lu.
Entre os sete tipos de ateísmos analisados por John Gray, o que há de mais recente é também o mais banal, esquemático e superficial. Sua análise do “Novo Ateísmo” de Dawkins e Harris, por exemplo, é provocadora e suficientemente convincente ao menos para relativizar o alcance da argumentação dos novos ateus. Um exemplo: ateu ou não, o leitor certamente deverá pensar duas vezes ao deparar com as afirmações de Sam Harris, que deseja “uma ciência do bem e do mal”, uma “ética científica”. Como afirma Gray, “não é por acaso que nem ele [Sam Harris] nem qualquer dos novos ateus promovem a tolerância como valor fundamental. Se a ética pode ser uma ciência, não há necessidade de tolerância”. Gray despacha esses ateus sem voltar a eles ao longo do livro.
Algumas modalidades de ateísmo, é claro, saem-se melhor na foto tirada por John N. Gray – ele próprio um cético bastante distante de qualquer variedade de fé religiosa. Por diversas vezes o ateísmo de certas escolas filosóficas da antiguidade helenística é mencionado como exemplar em sua moderação. No geral, contudo, vale a máxima chestertoniana: como espécie, parecemos inclinados a acreditar em qualquer coisa quando deixamos de aceitar um sistema de crenças espirituais altamente ordenado como o são as religiões tradicionais.
Os exemplos divertem, mas também chocam. Entre os adeptos do Humanismo Secular, o segundo tipo de ateísmo examinado por Gray, temos Karl Marx. Esse humanismo secular deveria ter substituído os males pregressos da humanidade, entre os quais se encontrava a religião – a grande opressora! –, e conduzido o gênero humano à salvação pela História. Os males humanos, contudo, seguiram os mesmos, ou até piorados, com esses seculares salvadores da espécie como Marx, que em seu profundo “humanismo” é capaz de escrever esse trecho torpe sobre Ferdinand Lassalle, dirigente socialista judeu alemão:
“Agora está perfeitamente claro para mim, como provam a forma da sua cabeça e o crescimento do seu cabelo, que ele [Lassalle] descende de negros que se juntaram à marcha de Moisés na saída do Egito (se é que sua mãe ou sua avó não se acasalaram com um crioulo). E esta combinação de judaísmo e germanismo com uma substância básica negroide deve gerar um produto peculiar. A agressividade do sujeito também é característica de crioulos.”
Como se vê, não é só o messianismo inerente ao marxismo que envelheceu mal. E na artilharia de Gray, não há seita que escape. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre a curiosa figura de Ayn Rand, emigrada russa, escritora e líder de uma seita que prosperou nos Estados Unidos, contando com adeptos até hoje (e mesmo no Brasil):
“O culto de Rand se destinava a governar cada aspecto da vida. Como grande fumante que era, seus seguidores eram instruídos a fumar também. (…) Não foi à toa que os ultraindividualistas que se tornaram discípulos de Rand passaram a ser conhecidos no movimento como ‘o Coletivo’. A escolha dos parceiros de casamento também era controlada. Na sua visão das coisas, seres humanos racionais não devem se associar aos que são irracionais. Não poderia haver pior exemplo disso do que duas pessoas unidas em casamento simplesmente pela emoção, e assim os oficiantes do culto tinham poderes para aproximar discípulos de Rand apenas de outros que também abraçassem a fé. Da cerimônia de casamento constava um juramento de devoção a Rand, seguido da abertura de ‘A Revolta de Atlas’ em uma página aleatória para leitura de um trecho do texto sagrado.”
Os exemplos bem o demonstram: a humanidade é capaz de acreditar em qualquer coisa. Felizmente, algumas dessas coisas são apenas aberrações patéticas, como é o caso da seita de Rand. Outras seitas já foram capazes de exterminar dezenas de milhões, como o nazismo e o comunismo.
Espantoso, mesmo, é que todas essas seitas sigam com ativos seguidores em toda parte ainda hoje.