Nas rodas de samba, Beth Carvalho (1946-2019) era a madrinha. Para Luana, era muito mais. Ela era a sua mãe. No último dia de abril, na data de um ano de morte da sambista, Luana estava reclusa em casa por causa da pandemia – e chorou. Mas chorar apenas não bastaria e, ao rever algumas letras de músicas que costuma anotar em um caderninho, percebeu que todas falavam de Carnaval e já tinham sido interpretadas pela mãe. Foi a deixa para reunir (virtualmente) os amigos espalhados pelo Brasil e gravar o EP Baile de Máscara, recém-lançado nas plataformas de streaming, no qual ela faz uma releitura de seis sambas que já foram gravados pela mãe.
Em um espaço de poucos anos, Luana perdeu o pai, o ex-jogador de futebol Edson Cegonha, em 2015 e, no ano passado, a mãe. “Foi-se meu escudo cronológico. Fazer esse disco foi a melhor maneira de dividir minha saudade e passar pelo processo de realizar um ano de sua morte”, diz. Não à toa, a cantora abre o álbum com Meu Escudo, samba gravado por Beth no LP Mundo Melhor (1976), em que ela canta que “para suportar o mundo de desilusão vou usando como escudo o meu coração”. Em seu disco-tributo, gravado em duas semanas, com produção de Kassin e arranjos do músico VovôBebê (violão e guitarra), Luana empresta sua voz suave e melodiosa, mais aguda que a da mãe, para interpretar um repertório de sambas nada óbvios, como Minha Festa, composto por Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Mas a boa surpresa é a emocionante Visual, de Neném e Pintado, em que Luana divide os vocais com a mãe.
Mangueirense, Cacique de Ramos e botafoguense, Beth Carvalho apoiou a filha em tudo. Mesmo quando Luana decidiu torcer para o arquirrival, o Flamengo. “Os botafoguenses talvez se incomodem, é compreensível. Mas minha mãe e eu sempre fomos muito respeitosas quanto a essa escolha”, lembra. “Ela me apoiava incondicionalmente. Foi a maior ‘madrinha’ que eu poderia desejar”, completa.
Aos 39 anos, Luana é plenamente consciente da responsabilidade que carrega por ser filha de quem é, e sabe que no meio do samba é parte de uma grande família. “O samba está em tudo que faço. Minha mãe me deu a oportunidade de absorver o sentido fundamental da ginga que constitui a cultura do nosso país”, diz. A responsabilidade vai além do sobrenome. Luana guarda em casa cerca de 600 gravações de Beth Carvalho que nunca foram lançadas. “Para lançar qualquer material de um artista falecido é preciso ter muita consciência de sua trajetória e possível conduta. Mesmo sendo filha, só posso fazer do jeito que imagino que ela faria e com muito respeito”, pondera.
Com uma doença que afetava sua coluna e a impedia de andar, Beth Carvalho teve um último ano difícil, acompanhado de perto por Luana. “Ela era proativa. Eu tinha muito orgulho disso, mas me dava medo como filha. Eu só queria que ela ficasse em casa. Ao mesmo tempo, o trabalho a revigorava”, lembra. Tanto que, mesmo sem conseguir se sentar, Beth chegou a se apresentar deitada, em uma cama montada no palco. Militante de esquerda, Beth Carvalho chegou a cantar para Fidel Castro e Hugo Chávez. Luana acredita que ela não se privaria de se manifestar contra o atual governo. “Com ou sem Covid, esse governo faria minha mãe sofrer de falta de ar.”