Em outubro de 1900, o jovem artista espanhol Pablo Picasso pisou em Paris pela primeira vez, aos 19 anos, atraído pela cena artística da capital francesa. Meses depois, retornou para apresentar 64 quadros em uma exposição organizada por seu marchand, Pere Mañach, em cujo apartamento ficou hospedado por dez meses. Despontando na nascente arte moderna, e acolhido pela comunidade catalã de Montmartre, Picasso adotou a França como sua casa, e permaneceu no país até sua morte, em 1973. Mas não teve recepção calorosa: com a xenofobia e a paranoia política crescentes, autoridades francesas colocaram informantes na sua cola e produziram, em junho de 1901, o primeiro relatório do “estrangeiro 74 664”. “Chegamos à conclusão de que Picasso compartilha das ideias de seu compatriota Mañach, com o qual habita. Em consequência, temos elementos para qualificá-lo como anarquista”, diz o trecho reproduzido no livro Picasso: o Estrangeiro, da historiadora francesa Annie Cohen-Solal, em pré-venda no Brasil pela editora Record.
Ao longo de 630 páginas baseadas em documentos, cartas que estavam em posse da família e relatos diversos, o livro reescreve a biografia de Picasso sob um ângulo pouco falado: a vida do mestre cubista como estrangeiro na França, e como essa vivência influenciou sua obra e foi determinante na construção da imagem de pária político e artista subversivo que construiu ao longo da carreira. Vigiado por décadas, o pintor teve sua vida em Paris dissecada em um dossiê policial, era acompanhado de perto pelas autoridades, e chegou a ser investigado pelo roubo da Mona Lisa — depois de adquirir (ao que parece, sem saber) peças roubadas do Louvre por um terceiro na mesma época do famoso furto da obra-prima de Da Vinci. “Ele tinha um estigma triplo. Era um estrangeiro, um artista de vanguarda e um anarquista”, disse a autora do livro a VEJA, explicando que o espanhol causava desconfiança não só na polícia, mas também na academia de belas-artes francesa, que via a arte moderna com maus olhos.
O Picasso combativo, no entanto, nem sempre existiu: no início de carreira, com medo de acabar expulso da França, o artista evitava polêmicas. “Até 1937, quando pintou Guernica, não tinha feito nenhum trabalho político”, atesta a historiadora, referindo-se ao painel que expôs o horror da Guerra Civil espanhola. Mesmo assim, menções a obras anteriores com “soldados estrangeiros espancando um mendigo” ou “mães de família que pedem esmola aos burgueses” são citadas nos relatórios policiais, mostrando que as autoridades estavam de olho em seu trabalho. A posição que o pintor assumiu como líder na arte de vanguarda também não agradava parte dos franceses. Segundo o livro, o sucesso da venda do quadro Les Saltimbanques (1905), feito pelo artista catalão e comercializado pelo galerista alemão Kahnweiler, provocou uma “onda de xenofobia em Paris”.
O pintor, no entanto, tinha um tato político apurado e sabia se proteger: mesmo com a resistência dos órgãos oficiais — em 1929, o Louvre se recusou a adquirir a revolucionária tela Les Demoiselles d’Avignon (1906-07) —, seu trabalho circulava por galerias e ganhava destaque no exterior, principalmente nos Estados Unidos. Com poder e influência no meio artístico, ele dispunha de contatos valiosos. Pouco antes da invasão da França pelos nazistas, em 1940, Picasso fez um pedido de naturalização. “Ele queria se proteger”, explica Annie, apontando que o pintor era visto como um “artista degenerado” por Hitler. Com a ajuda de amigos influentes, o processo de naturalização foi acelerado, mas acabou barrado por acusações de “atitudes antifrancesas”.
Mesmo assim, ele escolheu permanecer em Paris durante a ocupação nazista, e passou a viver de modo recluso a partir de 1942 — nesse mesmo ano, seu arquivo policial fora posto numa barca fluvial junto com outros “dossiês sensíveis” enviados a Berlim. Mais tarde, foi recuperado pelos soviéticos e readquirido pela França, em 2001. Mesmo assim, o bem relacionado Picasso foi privilegiado: nos anos de ocupação, era ajudado por gente como Jean Cocteau, poeta próximo aos nazistas, e tinha acesso a materiais e alimentos de qualidade num período em que tudo era racionado. No ateliê, recebia convidados pela manhã, incluindo burocratas do regime, e trabalhava até tarde. Quando a libertação veio, descobriu-se que seu novo marchand, Martin Fabiani, era “muito ligado aos alemães”, e esteve envolvido no saque a judeus e no tráfico de arte, “ganhando muito dinheiro com Matisse e Picasso”. A título de comparação: a fortuna de Picasso aumentou em 5,5 milhões de francos nesse período, enquanto a de Fabiani subiu 32 milhões.
Sua ambiguidade política não pararia por aí: em 1944, aos 63 anos, o pintor se filiou ao Partido Comunista Francês, depois de ser apresentado por amigos poetas simpáticos à resistência. O movimento, no entanto, foi visto por muitos como oportunismo em meio à libertação e “um meio ideal para o artista esconder sua amizade com o perturbador Fabiani ou mascarar a sua habilidade em conseguir bronze durante a ocupação”, nota a autora. Aclamado pelo enfrentamento artístico contra o franquismo, e revolucionário na arte ao romper os padrões com o cubismo, Picasso foi mestre e herói por décadas. Mais recentemente, porém, essa imagem foi abalada pela exposição demolidora de seu lado machista e abusivo para com suas “amadas”. “Ele tinha uma espécie de complexo de Barba Azul que o fazia querer cortar as cabeças de todas as mulheres que havia colecionado”, escreveu a ex Françoise Gilot em seu livro de memórias. No passado ou no presente, o mestre controverso sempre esteve na mira.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896