Há coisas engraçadas na seleção de um festival de cinema. Mais do que escolher bons filmes, a curadoria tenta escolher obras que se relacionam de alguma maneira, tematicamente ou estilisticamente, para tornar o trabalho do júri um pouco menos complicado. Mas às vezes as semelhanças são curiosas. Nos primeiros dias desta competição do 67º Festival de Berlim, que tem direção de Dieter Kosslick, por exemplo, dois longas-metragens, ambos dirigidos por mulheres, têm animais, mais especificamente cervos, no centro da trama. Três deles têm cenas significativas em regiões selvagens cobertas de neve, e três usam humor para falar de coisas sérias.
Em Testrol És Iélekrol (On Body and Soul em inglês, ou “de corpo e alma” na tradução livre), da húngara Ildikó Enyedi, os cervos aparecem em belas imagens numa floresta nevada, perto de um lago. Em princípio, elas não parecem fazer muito sentido com o resto da história, que se passa num matadouro em Budapeste.
Mária (Alexandra Borbély) é a nova funcionária do lugar, responsável pelo controle de qualidade das peças de carne que dali saem. É rigorosa e rígida, tanto que quase parece um robô. Tem dificuldades de interagir e é alvo de piadinhas. Seu chefe, Endre (Géza Morcsányi), também é um tipo discreto, que não é de mostrar seus sentimentos, ainda mais depois de um AVC ter lhe tirado os movimentos de uma das mãos. Eles se aproximam aos poucos, à base de muitos diálogos interrompidos. Mas acabam achando que existe algo a mais quando descobrem com a ajuda de uma psicóloga estarem tendo exatamente os mesmos sonhos todas as noites – envolvendo um cervo macho e uma fêmea, numa floresta nevada. Com bastante humor, a diretora leva a história um pouco adiante demais, mas mostra a dificuldade de se abrir para o outro para os introvertidos e tímidos.
Já no longa-metragem Pokot (Spoor, em inglês, ou rastro, na tradução livre), da polonesa Agnieszka Holland, os animais aparecem em versão mais realista. A protagonista Duszejko (Agnieszka Mandat) é uma engenheira civil aposentada que mora numa fazenda no alto da montanha, perto da fronteira da Polônia com a República Tcheca. Apaixonada por astrologia, vegetariana e amante dos animais, é adorada pelas crianças para quem dá aula de inglês e forma um bom círculo de amizades apesar de suas excentricidades, com o vizinho Matoga (Wiktor Zborowski), o nerd Dyzio (Jakub Gierszal) e a jovem a quem apelida Good News (Patricia Volny). Ajuda a todos com prazer. Duszejko fica arrasada quando suas duas cachorras desaparecem. Um pouco depois, seu vizinho é encontrado morto.
Ao longo de alguns meses, conforme as estações do ano (e as temporadas de caça) se alternam, outros homens da região morrem em circunstâncias estranhas. Todos eles são caçadores, inclusive o padre, já que a prática é tradição local. Holland explora com humor a conturbada história da região, que foi parte da Alemanha um dia, o catolicismo e o envelhecimento dos jovens combativos da década de 1960, tudo sob a estrutura do suspense. É penas que a premissa provocadora e divertida não se sustente com uniformidade.
Wilde Maus (Wild Mouse, ou “rato selvagem”, na tradução livre do inglês), do austríaco Josef Hader, usa uma paisagem urbana para falar de medo do fracasso e do declínio social. Georg (o próprio Hader) é um crítico musical de meia-idade, respeitado e temido, até ser dispensado pelo jornal onde trabalha por corte de gastos. Em vez de contar o que aconteceu à sua mulher Johanna (Pia Hierzegger), que está tentando engravidar, passa os dias a esmo, num parque de diversões de Viena ou tramando vinganças bobas contra seu ex-chefe, como riscar seu carro ou jogar um peixe morto na piscina. Johanna, terapeuta, também está em crise e tenta se agarrar à juventude. Num momento de desespero, Georg se joga na natureza, enfrentando sem roupa centímetros de neve numa floresta. O filme tem seus momentos divertidos, mas sua presença na competição só se explica por se encaixar nos temas debatidos nesta edição do festival.