Em uma hilária cena da série How I Met Your Mother, Barney (Neil Patrick Harris) resume o filme Karatê Kid de maneira prosaica: “É a história de um jovem entusiasta e esperançoso do caratê, levado por seus sonhos e sua coragem até o campeonato de All Valley. Infelizmente, ele perde na final para aquele garoto nerd, mas aprende uma lição importante sobre como aceitar a derrota com elegância”. Sim, para Barney, o verdadeiro “Karatê Kid” não é Daniel “San” LaRusso (“aquele magricela de Nova Jersey que mal sabe caratê”), interpretado por Ralph Macchio. E, sim, o valentão Johnny Lawrence (William Zabka), que só não ganhou o campeonato porque levou um golpe supostamente ilegal de Daniel (o famoso chute da garça). Após mais de três décadas, a série Cobra Kai, cuja terceira temporada estreou em 1º de janeiro na Netflix, impõe-se como novo fenômeno pop ao endossar essa narrativa alternativa e promover a redenção de Johnny.
Na primeira e na segunda temporada, a história situa o espectador no tempo. Descobrimos que LaRusso se tornou o próspero dono de uma concessionária de automóveis e tem um casal de filhos, enquanto Lawrence é um alcoólatra falido que não se relaciona bem com o filho. Para se reerguer, Johnny reativa o dojo Cobra Kai e recruta novos alunos, despertando em Daniel uma rivalidade que ele imaginava ter superado. Numa inversão de papéis, é Johnny quem ajuda um adolescente recém-chegado à cidade e vítima de bullying: Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de imigrantes latinos. “Temos a chance de compreender Johnny e de olhar para alguém considerado um valentão por três décadas e perceber que ali bate um bom coração”, disse Zabka em entrevista a VEJA.
Na terceira temporada, com os personagens já estabelecidos, a série ganha vida própria e avança para além da nostalgia, introduzindo novos dramas e sedimentando sua bem-sucedida reinvenção da mitologia de Karatê Kid para os jovens de hoje. Ela nem bem estreou e já ocupa o primeiro lugar das atrações mais vistas da Netflix no Brasil e nos Estados Unidos, e o segundo na Inglaterra e na Irlanda. O imenso sucesso do filme de 1984 ajuda a explicar a audiência da série. Mas o cultuado longa marcou também de forma indelével a carreira de William Zabka e Ralph Macchio. Desde então, os dois atores nunca mais se destacaram em outros trabalhos. “Foi o primeiro filme que fiz. E eu era o vilão. Depois, só recebi papéis de vilões”, diz Zabka. Macchio concorda. “Eu sempre dizia não para papéis similares. Um dia, descobri que precisava trabalhar para garantir o sustento da família.” Convencer os dois atores a reprisar personagens tão marcantes não foi fácil. Hayden Schlossberg, um dos criadores de Cobra Kai, revela que a sacada para dobrá-los foi mostrar que a série falaria da volta por cima de Johnny, indo além do repeteco do passado. “Nós assumimos o legado e a magia da franquia, mas apontamos para o futuro”, resume Schlossberg.
Superado o fato de estarem presos no mesmo papel pelo resto da carreira, os dois finalmente se sentiram à vontade para mergulhar nos personagens e se divertir com a ideia de que, no fim das contas, são só dois marmanjos que até hoje não pararam de se estapear. O fato de os dois personagens brigarem por qualquer coisa é a forma que os roteiristas encontraram para dar um escape humorístico à trama. “Para os dois protagonistas, a rixa é justificável. Mas ela se torna absolutamente ridícula quando vista por alguém de fora, como a esposa de Daniel. Ela não os conheceu na adolescência e não consegue entender o porquê disso”, explica Schlossberg.
Tudo fica mais saboroso com o retorno de outros personagens antigos dos filmes do Karatê Kid, interpretados por seus atores originais, como o malvado sensei John Kreese (Martin Kove), que ganha destaque com detalhes sobre seu nebuloso passado na Guerra do Vietnã. Ali Mills (Elisabeth Shue), a garota responsável pela eterna treta entre os caratecas, também retorna como uma mãe divorciada que ajuda os dois rivais a perceber quão boba é essa briga. Shue, aliás, é uma das poucas no elenco original da franquia a conseguir se desvencilhar do passado: teve uma indicação ao Oscar de atriz pelo filme Despedida em Las Vegas (1995) e fez bonito em séries como CSI (2012 a 2015) e The Boys (2019).
Na terceira temporada, as cenas de flashback realçam especialmente os acontecimentos de Karatê Kid 2 (1986), ambientado em Okinawa, no Japão, e resgatam o elenco nipônico, com a volta de Kumiko (Tamlyn Tomita) e do brutamontes Chozen (Yuji Okumoto). Morto em 2005, o ator Pat Morita é uma citação constante. Ele surge na pele do professor Miyagi em flashbacks, como uma espécie de guia espiritual de Daniel. “Ele é o Mestre Yoda humano”, disse Macchio a VEJA (leia aqui), aludindo ao sábio ancião jedi da saga Star Wars.
Os dramas pessoais de Johnny e Daniel, no entanto, prevalecem. Após uma violenta briga entre os estudantes do Miyagi-Do e do Cobra Kai, ambos estão devastados com as trágicas consequências, como a internação de Miguel, protegido de Johnny, e a fuga de Robby (Tanner Buchanan), pupilo de Daniel. É a partir daí que Daniel começa a revisitar seu passado, viajando para o Japão, e Johnny vive o aguardado reencontro com seu amor da adolescência, Ali Mills. Mas, afinal, passados trinta anos, aquele chute na final do campeonato foi ilegal ou não? Para o roteirista Josh Heald, não. “Miguel (personagem treinado por Johnny) usou o mesmo golpe na primeira temporada e marcou 1 ponto. Então, talvez não seja ilegal”, opina, com a riqueza de referências típica dos fãs nerds de Karatê Kid. “Acima de tudo, Johnny ‘adotou’ Miguel, assim como o senhor Miyagi adotou Daniel. É uma história de pai e filho que talvez possa dar a Johnny a redenção esperada.” Que a quarta temporada chegue logo para dar a resposta.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720