Em uma passagem de As Troianas, um dos mais conhecidos textos teatrais da Grécia Antiga, Helena, mulher do rei Menelau, ao tomar conhecimento de que sua formosura poderia desencadear uma guerra, lamenta: “Se ao menos eu pudesse abandonar minha beleza, da mesma forma que se apaga a cor de uma estátua”. Escrito há quase 2 500 anos, esse trecho de Eurípedes deixa claro que havia colorido nas formas originais das esculturas entalhadas em mármore que viriam a forjar um ideal de beleza branquíssimo no mundo ocidental — mito que uma exposição do Metropolitan Museum of Art, de Nova York, se encarrega agora de derrubar. Usando tecnologia avançada e métodos inovadores de restauro, o Met exibe réplicas de deuses, heróis e cenas mitológicas na sua vibrante concepção original — uma surpresa de encher os olhos.
Se especula sobre a cor nas brancas estátuas gregas desde o século XIX, mas a descoberta foi consolidada na década de 80, quando o arqueólogo alemão Vinzenz Brinkmann, da Universidade Ludwig Maximilian, em Munique, estudava o uso de ferramentas na Antiguidade. Em busca de marcas microscópicas em estátuas da época, ele desenvolveu uma lâmpada capaz de destacar o relevo das superfícies e, por mero acaso, encontrou resíduos de pigmentos apagados pela ação do tempo. “Fiquei surpreso ao descobrir que um aspecto tão fundamental dessas obras de arte tinha sido ignorado”, disse Brinkmann a VEJA. A revelação abriu um amplo campo de estudos para ele e a mulher, Ulrike, que se puseram a colorir réplicas em gesso com os tons identificados nas obras originais através de técnicas cada vez mais apuradas. A exposição do Met é um passo à frente nessa empreitada: em parceria com o departamento de pesquisa do museu, o casal usou aparelhos de raios-X, radiação eletromagnética e raios ultravioleta para desvendar a composição química exata das tintas usadas na Antiguidade.
Um dos mais notáveis exemplos da técnica é a recriação de uma esfinge de 530 a.C., com penas douradas e asas vermelhas e azuis, que faz parte do acervo do museu e agora pode ser admirada em todo o seu brilho original na mostra que ganhou o nome de Chroma — cor em grego. Também encantam os visitantes a frisa de guerra do chamado Sarcófago de Alexandre, do fim do século IV a.C., na qual 22 pigmentos identificados tingem de amarelo, vermelho e azul as vestimentas ornamentadas e até o interior dos escudos dos soldados persas, em contraposição ao nu idealizado dos macedônios, e os traços de tom dourado no entalhe de uma ânfora de 480 a.C., parte do acervo do Met.
Brinkmann espera que os principais museus do mundo sigam o exemplo e façam “escavações” em suas coleções para identificar as cores originais das obras e, assim, mudar o conceito estabelecido pelos estudiosos da arte ao longo do tempo, que fez da brancura um sinônimo de beleza. A ideia começou a ser cultivada no século XIV, quando os artistas do Renascimento criaram esculturas espetaculares sem uma gota de cor, já que eram inspiradas em obras antigas desgastadas pelo tempo. Na época, quando novas escavações desenterravam alguma estátua colorida, preservada do sol e da chuva, sua origem era invariavelmente atribuída a civilizações menos desenvolvidas. No século XVIII, Johann Winckelmann, o papa da história da arte, atribuiu uma estátua da deusa Ártemis com cabelo ruivo e sandálias vermelhas aos etruscos. Para ele,“quanto mais branco o corpo, mais bonito ele é”.
A discussão estética ganhou contornos sociais e políticos, com o inevitável componente de preconceito. Em Teoria das Cores, o poeta e dramaturgo alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) escreveu que “nações selvagens, indivíduos sem instrução e crianças têm uma grande predileção por cores vivas”, geralmente evitadas por “pessoas refinadas”. O fascismo e o nazismo do século XX resgataram o perfil apolíneo como padrão estético para defender a supremacia do homem branco. “Na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler, artistas reinterpretaram o passado a fim de fabricar artificialmente um patrimônio superior da civilização europeia”, explica o historiador da arte Felipe Martinez, do Masp.
A rejeição da contaminação pelas cores nas obras-primas da Antiguidade segue forte e presente no mundo das artes e a exposição do Met tem o declarado propósito de sacudir os argumentos dos céticos que, ainda hoje, questionam por que gregos e romanos passariam meses trabalhando com cinzel e martelo sobre um material tão belo quanto o mármore para, depois, cobri-lo com tinta. Ou ainda de rebater a crítica recorrente de que o trabalho do casal Brinkmann é kitsch, por causa dos tons vibrantes. “Fica cada vez mais impossível rejeitar que, na Grécia, a cor tinha associações poéticas positivas”, afirma David Batchelor, autor do livro Cromofobia. A sociedade contemporânea tem muito a aprender, se começar a enxergar o mundo com as cores do passado.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823