“Não sinto tristeza, sinto raiva”, diz Karim Aïnouz a VEJA por telefone de Nova York, onde ele promove o filme A Vida Invisível na busca por uma vaga entre os indicados ao Oscar. O momento de contentamento foi interrompido pela cólera, depois que a Ancine cancelou uma sessão de seu longa para servidores do órgão. A Ancine não explicou com clareza o motivo do veto: além da suspensão da exibição, cartazes do filme foram retirados das paredes da agência reguladora do audiovisual nacional. Em entrevista exclusiva, o cineasta cearense discorre sobre a forma como o governo de Jair Bolsonaro trata a cultura brasileira e questiona os atuais representantes da Ancine. “Quais são as credenciais dessas pessoas?”, dispara.
Como recebeu a notícia do veto ao filme no evento da Ancine? Soube pelo Whatsapp, um amigo me mandou ontem à noite a notícia que a VEJA publicou sobre o assunto. Estou em Nova York fazendo a campanha do filme pelo Oscar. Fiquei surpreso. Parecia tão absurdo que demorei a entender. Tentei apurar com pessoas do meio, mas não consegui. Existe um ambiente de medo na Ancine, criado por este governo.
Mas, afinal, descobriu qual o motivo do veto? O que eu percebo é que o governo Bolsonaro é um governo nebuloso. Que não explica o que faz, não faz comunicados oficiais. É uma rede de desinformação: postam algo no Twitter, apagam, depois postam outra coisa. Faz parte da estratégia deles deixar a população no escuro. Dizem que foi um problema técnico, mas então por que tiraram os cartazes de A Vida Invisível das paredes da Ancine? Foi censura, sim. Não podem cancelar a projeção de um filme num órgão público sem explicar claramente o motivo.
Tem algo no filme que pode ter despertado essa atitude? Não imagino o que seja. O filme foi escolhido por uma comissão do Brasil [a Academia Brasileira de Cinema] para representar o país na busca por uma vaga no Oscar. Ele foi feito com o apoio da Ancine. Então, qual o argumento para impedir que seja exibido neste mesmo órgão público? O que vejo é que existe uma guerra ideológica cega que vai contra interesses econômicos. O desmonte do audiovisual no Brasil afeta um forte setor econômico. É estrategicamente incongruente. Em vez de o governo apoiar uma indústria que dá retorno financeiro e representa o país no mundo, decide nos boicotar. Se não temos esse apoio, uma atividade econômica é interrompida, o que compromete o país financeiramente.
Acha que esse episódio pode, na contramão, ajudar a promover o filme? A censura só faz mal ao Brasil. Nos deixa num papel vergonhoso internacionalmente. Ela não ajuda em nada. Ela deixa patente que temos um governo covarde, espúrio, indigno. É uma pena que num momento de alegria, que nosso filme está sendo celebrado pelo mundo, ter de lidar com coisas primarias como essa. O que mais escuto ao redor são comentários de tristeza. Mas eu não tenho tristeza, eu tenho raiva. É uma pena que eu sinta isso, num momento que deveria ser de alegria. Que governo é esse? Que consegue contaminar e ser de uma toxicidade em um ano que era para ser só alegria? A gente deveria estar falando do filme, e não disso. É de uma falta de respeito como há muito eu não via.
A censura só faz mal ao Brasil. Nos deixa num papel vergonhoso internacionalmente. Ela deixa patente um governo covarde, espúrio, indigno.
Karim Aïnouz, diretor de 'A Vida Invisível'
O embate entre o governo de Jair Bolsonaro e o cinema brasileiro quase o levou a fechar a Ancine. Como analisa esse momento da política cultural no país? Eu me pergunto por que somos tão temidos. Se há censura, ou estão em desacordo com algo do filme ou estão com medo de alguma coisa. Por isso é importante que essa história seja esclarecida, com urgência, pois é perigosa para a imagem do Brasil internacionalmente.
Você está nos Estados Unidos divulgando o filme, já viu alguma reação internacional sobre caso? Pouco depois de receber a notícia, participei de um programa ao vivo americano e me questionaram por que o filme foi vetado nessa exibição. Eu disse que adoraria saber a resposta.
Quem ataca a Fernanda Montenegro, está em surto. Só pode ter um desequilíbrio mental clínico. De repente a Fernanda é colocada como antagonista da cultura brasileira? Não faz nenhum sentido.
Karim Aïnouz, diretor de 'A Vida Invisível'
O Secretário da Cultura, Roberto Alvim, já demonstrou repúdio por Fernanda Montenegro, que está no filme. Crê que isso esteja relacionado ao veto? É difícil especular. Se isso for um motivo, pior ainda. Fernanda é um patrimônio nacional, reconhecida no mundo inteiro. Quem ataca Fernanda Montenegro está em surto. Só pode ter um desequilíbrio mental clínico. De repente, a Fernanda é colocada como antagonista da cultura brasileira? Não faz nenhum sentido. Essa mulher só merece ser reverenciada. Um dia, estávamos juntos e a questionaram sobre o que esse Roberto disse sobre ela, ao que Fernanda respondeu: eu nem sei quem é esse senhor. Eu digo o mesmo: quem são essas pessoas à frente de um importante órgão público? Quais são suas credenciais?