O que vivenciei é uma amostra fiel de como parte dos brasileiros trata a arte nacional. Eu adquirira a obra-prima Abaporu, de Tarsila do Amaral, em 1984, do empresário Érico Stickel. Foi-me dada a chance de pagá-la em cinco parcelas, mas acertei de uma vez só: 250 000 dólares. Depois de ganhar e perder muito dinheiro com ações, vivi um período de problemas financeiros e tive de vendê-la a um colecionador argentino, com dor no coração. O ano era 1995. Como integrava o conselho da Bolsa de Valores, que à época montava sua coleção de arte, ofereci algo que qualquer especialista em arte jamais recusaria. Para minha surpresa, ninguém se apresentou. Fui em busca de outros compradores, de empresas a pessoas físicas, sem sucesso. A única saída foi vender o quadro em um leilão fora do Brasil, na Christie’s de Nova York. Uma vez marcada a data do evento, aconteceu o imprevisível. Precisei travar uma batalha judicial contra o governo do Estado de São Paulo, que, ao saber da venda da tela modernista, tomou uma medida inédita: tombou o Abaporu como patrimônio estadual.
Com essa medida arbitrária, o colecionador seria impedido de comercializar o quadro e até mesmo de emprestá-lo a um museu sem autorização prévia. Entrei com uma liminar e, finalmente, o Abaporu embarcou para os Estados Unidos, menos de 24 horas antes de o leilão começar, escoltado por polícia armada. Em Nova York, houve outra surpresa. A guerra judicial com o governo paulista afugentou os dois únicos interessados que até então tinham feito os cadastros. A diretora da Christie’s perguntou se eu queria desistir, diante do iminente risco de encalhe. Não topei, já não poderia desistir. Imagine voltar para o Brasil com o Abaporu debaixo do braço. Seria um retrocesso enorme para a arte brasileira. Na hora do leilão, uma surpresa: o argentino Eduardo Costantini deu o maior lance e arrematou a tela por 1,3 milhão de dólares. Levou também o Autorretrato com Macaco e Papagaio, da Frida Khalo, por outros 3,2 milhões de dólares. Costantini formava sua coleção de obras de arte latinas para compor o acervo do Malba, em Buenos Aires.
Se foi complexo tirar o Abaporu do Brasil, também foi difícil permitir seu ingresso na Argentina. O governo do país vizinho decidiu taxar em 10% o valor das obras adquiridas. Enquanto Costantini lutava na Justiça local para diminuir o imposto, os quadros de Tarsila e Frida ficaram exilados no Uruguai. À época, eu possuía uma casa em Punta del Este, e tive a chance de rever meu antigo quadro, já um ano após o leilão. Costantini organizou uma exposição no Museo Nacional de Artes Visuales, de Montevidéu, com a presença do então presidente uruguaio, Julio María Sanguinetti. O quadro da Frida, que eu particularmente acho horrível, estava cercado por uma proteção de vidro, na expectativa de ser a grande atração da mostra. Na abertura, no entanto, a realidade: apenas quatro gatos-pingados apreciavam a tela da mexicana, enquanto 150 pessoas admiravam o Abaporu. Na hora, Costantini teve a certeza de ter feito um excelente negócio. Aliás, ao perceber a bobagem de não ter ficado com o Abaporu, a Bolsa de Valores pediu que eu tentasse repatriá-lo. O orçamento era de 3 milhões de dólares. Ainda estiquei a corda para 4 milhões, mas o atual dono não quis nem saber. Hoje, o quadro está avaliado em pelo menos 75 milhões de dólares. Acompanhei, agora, o extraordinário interesse pela obra da Tarsila no Masp, em São Paulo, com filas a perder de vista, e me senti orgulhoso. Não sinto tristeza por ter vendido o Abaporu, pois a obra me ajudou em um momento de dificuldade financeira. Infelizmente, nos últimos dias, por uma questão de saúde, não tive a chance de apreciá-lo pessoalmente.
Depoimento dado a João Batista Jr.
Publicado em VEJA de 7 de agosto de 2019, edição nº 2646