Na casa dos Pereira, na Zona Norte de São Paulo, o aparelho de som era um feudo de dona Natalícia. Bastava uma festa na viela em que a família morava, no começo dos anos 80, e lá estava o aparelho a tocar forró, jovem guarda, sertanejo. Quando o adolescente Edivaldo, seu único filho, pedia para pilotar o pickup, ela só concordava sob a condição de ter a última palavra na seleção musical. “Bota o samba-rock de que a mãe gosta”, dizia. O rapaz se tornaria DJ e depois rapper — com o nome de Edi Rock. Em 1988, formou os Racionais MC’s, o maior grupo da história do hip-hop nacional, ao lado de Mano Brown, Ice Blue e do DJ KL Jay. Mas a versatilidade musical de dona Natalícia, que morreu em 2015, ainda norteia Edi Rock. Origens, seu segundo disco-solo, conversa com os rappers da nova geração e abre espaço para gêneros como o sertanejo. “A mistura que faço no trabalho-solo não cabe nos Racionais ”, admite.
Dentro de um quarteto famoso por sua postura belicosa e “antimídia”, Edi é o conciliador. Fala com veículos de imprensa que vão de encontro à linha de pensamento esquerdista dos parceiros (ainda que também seja um entusiasta de Lula e tenha cravado Haddad na última eleição) e até foi a programas da Globo, emissora vista como inimiga pelos colegas. “Sou dos Racionais, mas não sou ‘O’ Racionais. Consultei meus amigos de grupo, e eles disseram que eu devia fazer o que achava certo”, diz.
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A atitude se reflete também nas letras. Mano Brown, uma das penas mais afiadas do hip-hop, é adepto do combate, ao passo que Edi tem uma visão um pouco mais otimista. “Vamos para o mesmo destino, com caminhos diferentes. Brown é bravo, é guerra. Sou da motivação e tenho um lado espiritual forte.” Diz ele nos versos da faixa Mágico de Oz: “Grana suja como vem, vai / Não me engana / Queria que Deus ouvisse a minha voz / E transformasse aqui num mundo mágico de Oz”.
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Edi venera os Racionais, que compara à seleção brasileira — ao menos no quesito popularidade a falta de modéstia se justifica: em trinta anos de carreira, o grupo expandiu seu público da periferia à juventude de classe média e, recentemente, lotou por três noites uma casa noturna paulistana com capacidade para 8 000 pagantes. Mesmo vestindo a camisa dos Racionais, Edi admite que o excesso de reuniões para definir os próximos passos do quarteto é cansativo. “Muita coisa não acontece por causa do grupo. Temos um documentário e um filme sobre nossa história à espera de definição.” Os Racionais são assombrados pela postura radical dos primeiros anos. Mano Brown recebeu seu quinhão de narizes torcidos quando resolveu fazer uma letra romântica. Edi admite que criou canções que hoje considera machistas — e que Taila e Thaís, filhas do seu primeiro casamento, pedem que não cante mais. Mulheres Vulgares fala de uma interesseira “derivada da sociedade feminista”. Estilo Cachorro critica um tipo mulherengo, mas provoca mal-estar por versos assim: “Tem boa fama no meio das vadias / Daquelas modelo que descansa (sic) durante o dia, tá ligado?”.
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Hoje aos 49 anos, Edi nem sempre foi um sujeito fácil de lidar. Quando insistia em jogar bola dentro de casa, o caldo entornava com dona Natalícia. “Minha mãe me batia com fio de ferro”, relembra o rapper. Já o pai Edi Rock procura ser amigo de Taila e Thaís. A primeira trabalha como cabeleireira, e muitos de seus fregueses — rappers e cantores, em sua maioria — colaboraram em Origens. Thaís se formou em contabilidade e ajuda no escritório do pai. “Foi difícil segurar as duas peças com essa onda de funk. Mas dou conselho, vou à balada com elas.”
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Na sua juventude, Edi ganhou o apelido de Coquinho por causa das origens nordestinas (“Diziam que minha cabeça parecia um coco”). Mais tarde, viveu as agruras de ser um dos pioneiros do hip-hop de São Paulo. “Era enquadrado direto pela polícia no Metrô São Bento”, lembra, referindo-se à estação que reunia rappers e dançarinos de break nos anos 80. Boa parte das canções de Origens faz referência a esse passado e às relações familiares. Nos próximos trabalhos, Edi pensa em parcerias com DJs de tecnobrega e grupos de rock. “Gosto de ir além do lugar-comum”, diz. O racional dos Racionais é muito mente aberta.
Publicado em VEJA de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668
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