Estou dançando no inferno”, pensou Edith Eva Eger, aos 16 anos, no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia. Bailarina e ginasta profissional, a jovem, então de cabelo raspado e uniforme de prisioneira, recebeu a ordem de Josef Mengele: “Pequena dançarina, dance para mim”. Mengele, médico e capitão da SS, tropa de elite nazista, ganharia o apelido de “anjo da morte” — e a adolescente judia já sabia do que esse anjo era capaz. Ao chegar a Auschwitz, a mãe de Edith foi selecionada por Mengele para seguir na fila da câmara de gás. “Ela vai tomar banho”, mentiu ele, sorrindo. O pai também teve a vida ceifada naquele que se tornaria o mais notório palco do Holocausto, onde morreu 1,3 milhão de pessoas. Mengele tinha outro prazer obscuro: tratar as prisioneiras como entretenimento. O carrasco passeava pelos barracões em busca de talentos que pudessem diverti-lo, rotina que o fez conhecer Edith. Ele deu a ordem e sua orquestra particular, formada por cativas, fez soar a valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss II. Inicialmente estática, Edith arriscou sua coreografia. Enquanto ela dançava, Mengele falava com outro oficial, escolhendo quais garotas seriam assassinadas. Temendo desagradar-lhe, Edith fechou os olhos e imaginou que girava no palco da ópera de Budapeste, realizando espacates e seu movimento favorito, o grand battement. No fim, Mengele lhe jogou um pão como “prêmio”. Por um ano, entre 1944 e 1945, a garota usou mais vezes as habilidades físicas para sobreviver ao genocídio. Mas foi outro tipo de força que ajudou a protagonista de A Bailarina de Auschwitz a suportar o cativeiro. Nascida na Eslováquia ao tempo em que esta pertencia ao império austro-húngaro e desde cedo convivendo com o antissemitismo, Edith aprendeu com a mãe a fazer da mente um refúgio contra as ameaças e o medo. No término da guerra, Edith e a irmã Magda foram deixadas em uma pilha de corpos para morrer (uma terceira irmã já havia escapado de ser presa). Doente e pesando 32 quilos, ela foi resgatada por soldados americanos. As mazelas físicas foram curadas. Hoje, aos 91 anos, morando na Califórnia, a ex-ginasta ainda dança.
Após décadas sofrendo de stress pós-traumático, Edith, doutora em psicologia, narra sua história espantosa em volume recém-lançado no Brasil. “É importante que meus bisnetos saibam que seus ancestrais nunca desistiram”, disse a VEJA. O terror e a repulsa descritos em A Bailarina de Auschwitz comovem, mas o que sobressai é a personalidade solar da protagonista. O uso do bom humor como tática de resistência levou Edith a ser chamada de “a Anne Frank que sobreviveu”. A bailarina não rechaça a comparação: “Anne era jovem, tinha sonhos, queria ser famosa. Eu também”. Na literatura que emergiu do Holocausto, há obras monumentais da memorialística, como É Isto um Homem?, do italiano Primo Levi, e A Noite, do romeno Elie Wiesel — ambos também judeus que sobreviveram aos campos nazistas. Com sua narrativa impressionante, transformada em livro com o auxílio de uma escritora profissional, Edith está mais próxima da autora do popular O Diário de Anne Frank. Se ambas estão longe da excelência literária de um Levi ou um Wiesel, o atrativo que oferecem não é menos poderoso: as histórias de vida ditas “inspiracionais”.
Enquanto o diário de Anne Frank foi transformado em best-seller juvenil postumamente, Edith se aproxima por vontade própria da autoajuda. A certa altura do livro, atesta que os nazistas eram os prisioneiros, não ela. “Sou livre em minha mente, algo que ele nunca será”, escreve sobre Mengele. Quando obrigada a doar sangue a nazistas, ria da ironia: “Boa sorte ao tentar vencer a guerra com meu sangue judeu”. Durante a noite, promovia concursos de beleza entre as prisioneiras. Em um deles, venceu a eleição dos seios mais bonitos.
Assim como Anne, Edith teve episódios de inescapável tristeza. “Existir é uma tremenda obrigação”, escreve. Os sintomas da depressão ficaram mais patentes quando Edith e a família se mudaram para os Estados Unidos, fugindo do comunismo. Ela passou a ter visões e a cobrir a cabeça ao ouvir sirenes — reações de que sofre até hoje. Foi na faculdade de psicologia, perto dos 50 anos, que ela descobriu Viktor Frankl, fundador da logoterapia, a chamada Terceira Escola Vienense de Psicoterapia — sucessora das escolas de Sigmund Freud e Alfred Adler. Frankl também sobreviveu a Auschwitz. No livro Em Busca de Sentido, ele observa os campos de extermínio aliando a psicologia à filosofia. Frankl percebe que é possível manter a liberdade e a independência mental em circunstâncias desumanizadoras.
Ao narrar sua recuperação, Edith faz paralelos com as dores dos seus pacientes — entre eles, um jovem neonazista. “Guio pessoas da vitimização rumo ao empoderamento.” Após dar apoio a uma idosa em depressão, Edith vislumbrou sua cura: era preciso voltar ao passado para seguir em frente. Então, venceu sua arraigada resistência a visitar a Alemanha para fazer uma palestra em Berchtesgaden, cidade de uma das residências de Adolf Hitler. Ali, teria tido um “encontro” com o líder nazista. “Eu perdoei Hitler”, diz. “Abri mão do ódio para não ser prisioneira do passado.” Sobre Mengele, que morreria escondido no Brasil, em 1979, o desapego é o mesmo. “Não me importo que ele tenha morrido sem ser capturado. Quem procura vingança não é livre”, diz. Rindo, ela dá a prova definitiva de sua leveza: “Aliás, adoraria conhecer o Brasil e dançar os ritmos lindos desse país”.
Publicado em VEJA de 3 de abril de 2019, edição nº 2628
Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br