No dia 6 de junho de 1944, a aliança entre Estados Unidos, Reino Unido e Canadá dava início à Operação Overlord, a invasão militar mais importante da Segunda Guerra Mundial — e ponto de virada crucial na história da humanidade. A ação contou com 160 000 soldados e 10 000 veículos que, saindo da Inglaterra pelo Canal da Mancha, desembarcaram na costa da Normandia, na França, sob uma intensa saraivada de tiros e bombas nazistas — cena retratada com intensidade extrema no filme O Resgate do Soldado Ryan (1998). O premiado longa do diretor Steven Spielberg com o ator Tom Hanks é um entre diversos exemplares primorosos da ficção que mergulharam no feito iniciado ali, conhecido então como Dia D, que há oitenta anos marcava o que viria a ser a vitória dos Aliados no conflito. Para além do cinema, a data foi destrinchada em livros, na TV, na música e até em videogames — e continua a fascinar, como atestam lançamentos recentes. Entre eles, outra parceria de Spielberg e Hanks se destaca: com produção assinada pelos dois, a notável minissérie Mestres do Ar, da Apple TV+, lançada neste ano, acompanha pilotos que atuaram nos aviões de bombardeio B-17, conhecidos como Fortaleza Voadora, essenciais para minar a força nazista durante a invasão. O drama fecha uma espécie de trilogia da dupla: após o sucesso de O Resgate do Soldado Ryan, eles se uniram para produzir a minissérie Band of Brothers (2001), que retratou outro ângulo da invasão, jogando luz sobre a ação de 23 000 paraquedistas que saltaram de 11 000 aviões atrás das linhas inimigas.
O Resgate do Soldado Ryan [Blu-ray]
Band of Brothers: Companhia de heróis – Stephen E. Ambrose
A variedade de olhares mostra que aquele dia histórico é inesgotável — e ainda há muito a se falar sobre ele. Dois novos livros de não ficção lançados recentemente no exterior, ainda sem edição no Brasil, iluminam a participação dos dois principais líderes da invasão. Em The Light of Battle: Eisenhower, D-Day, and the Birth of the American Superpower (À Luz da Batalha: Eisenhower, o Dia D, e o Nascimento da Superpotência Americana, em tradução livre), o historiador e professor de direito da Universidade Columbia Michel Paradis conta como a liderança do general Dwight Eisenhower (1890-1969), um militar de carreira que depois da guerra se tornou presidente dos Estados Unidos, foi decisiva no sucesso do Dia D. Do lado britânico, as tensas decisões tomadas pelo primeiro-ministro Winston Churchill (1874-1965) nos dias que antecederam a invasão são reveladas em Churchill’s D-Day: The Inside Story (O Dia D de Churchill: Os Bastidores da História, em português), contadas pelo general Richard Dannatt, em parceria com o historiador Allen Packwood. Fora do campo da teoria, o Dia D também se tornou uma experiência no videogame: são centenas de títulos que colocam o jogador dentro do embate, sendo o pop Call of Duty: WWI, de 2017, a melhor recriação visual do ataque. A razão para tantos títulos variados é prosaica: a invasão foi amplamente registrada. Há farto material em fotos, áudio e vídeos dos atos heroicos alcançados por aqueles soldados. O Exército americano conhecia bem o impacto causado por imagens e filmes — e não se furtou a explorar essa vertente.
The Light of Battle: Eisenhower, D-Day, and the Birth of the American Superpower – Michel Paradis
Para além da facilidade de recriação histórica, o Dia D fascina cineastas e autores por ser um marco decisivo na transformação dos Estados Unidos em uma superpotência. “De repente, um novo tipo de mundo é construído em torno de ‘valores americanos de liberdade’. Essas não eram ideias universais nem na Grã-Bretanha, que mantinha parte do mundo como suas colônias”, afirma o autor Michel Paradis a VEJA (leia a entrevista). “Penso que, se o Dia D não tivesse sido tão bem-sucedido, o curso da história europeia e provavelmente da história mundial teria sido espetacularmente diferente.”
Churchill’s D-Day: The Inside Story – Richard Dannatt e Allen Packwood
Os preparativos para o Dia D começaram a ser gestados um ano antes, com a fabricação dos veículos e armamentos nos Estados Unidos, além do treinamento das tropas. Uma intensa campanha de contrainformação foi lançada para confundir os nazistas, além de uma sucessão de ataques aéreos que minaram parte da capacidade de reação dos alemães. As tropas aliadas invadiram cinco praias, apelidadas de Utah, Omaha, Gold, Juno e Sword. Após o saldo trágico de 10 000 mortes logo no primeiro dia, elas conseguiram conquistar as praias e, dali, iniciar o desembarque do restante das tropas e tanques, que aos poucos foram tomando o território. Em agosto daquele ano, finalmente Paris foi libertada. Diferentemente da França e do Reino Unido, que lutavam pela sobrevivência, o território americano não sofreu bombardeios e não precisou ser reconstruído. Isso deixou o país em uma situação extremamente favorável para se impor como potência econômica e militar, posição que, como se sabe, dura até hoje.
Call Of Duty: WWII [Jogo para Playstation 4]
Mestres do ar – Donald L. Miller
Apesar do protagonismo americano, a participação dos britânicos foi essencial para o sucesso da ofensiva. Os ingleses ficaram responsáveis pela conquista das praias de Sword e Gold. É sobre uma dessas batalhas que fala um terceiro livro sobre o Dia D também lançado recentemente: Sword Beach — The Untold Story of D-Day’s Forgotten Battle (Praia de Sword — A História Não Contada da Batalha Esquecida do Dia D), do historiador Stephen Fisher. Especialista em assuntos militares náuticos, o autor volta sua pesquisa para ações pouco lembradas, como a atuação de pequenos barcos da guarda costeira.
Sword Beach: The Untold Story of D-Day’s Forgotten Battle – Stephen Fisher
No próximo dia 6, o governo francês celebrará o Dia D nas cinco praias da Normandia. Autoridades dos países aliados, o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, o rei Charles III, o presidente da França, Emmanuel Macron, e o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, confirmaram presença. Embora Vladimir Putin não tenha sido convidado devido à guerra na Ucrânia, a França, a contragosto dos americanos, fez questão de convidar um representante da Rússia. “Talvez isso lembre aos russos que eles realmente lutaram no passado contra nazistas reais, e não contra nazistas imaginários na Ucrânia”, disse um representante da diplomacia americana. O episódio serve de lembrete: a paz conquistada no Dia D ainda é frágil — e relembrar esse dia histórico, mas doloroso, é essencial.
Novo mundo
Retratado em filmes, séries e games, o dia 6 de junho de 1944 se mantém vivo na memória da humanidade
Band of Brothers
A série de 2001, disponível nas plataformas Max e Netflix, retrata a história real do treinamento dos paraquedistas da Companhia Easy, que saltaram no Dia D atrás das linhas inimigas, um desafio assustador e essencial no conflito.
Call of Duty: WWII
O game de 2017 faz uma das mais fiéis reproduções da invasão aliada na costa francesa, dando ao jogador a sensação de vivenciar o mesmo inferno experimentado pelos soldados. Além do desembarque na Normandia, o jogo também conta com missões no interior do país.
O Resgate do Soldado Ryan
O épico dirigido por Steven Spielberg, lançado em 1998 e vencedor de cinco estatuetas no Oscar, recria em 27 minutos ininterruptos o dramático desembarque dos soldados na Praia de Omaha, na costa francesa, sob uma chuva de bombas e tiros nazistas que dizimou milhares de vidas.
Mestres do Ar
Lançada neste ano, a intrigante série da Apple TV+ acompanha os aviadores responsáveis por pilotar os aviões que atacavam posições nazistas na Europa antes do Dia D. O 100º Grupo de Bombardeio foi um dos que mais sofreram baixas na guerra
“O Dia D foi espetacular”
O historiador e professor de direito Michel Paradis analisa as razões que fazem do confronto uma data a ser lembrada.
Por que ainda é importante falar do Dia D atualmente? Foi a primeira grande vitória da Segunda Guerra. Ali começou a era da superpotência americana. Todos os antigos impérios europeus decaíram em seguida, inclusive o britânico.
Por que ele foi tão retratado na ficção? Na Segunda Guerra houve vitórias aqui e ali, mas o Dia D foi espetacular e as imagens dos homens subindo a Praia de Omaha ficaram tão icônicas quanto as do pouso na Lua, da chegada dos Beatles aos Estados Unidos ou do assassinato de Martin Luther King Jr. São imagens singulares que capturam momentos cruciais da história.
As crises mundiais atuais são um lembrete de que a paz ainda é frágil? Grande parte da prosperidade que resultou de um mundo muito mais livre e mais liberal foi partilhada de forma desigual. Definitivamente acho que o mundo está se tornando cada vez mais perigoso em termos ideológicos.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894