Em um rancho isolado em Montana, no centro-oeste dos Estados Unidos, rebanhos transitam pelo pasto alheios à trama que se desenrola entre os humanos. Ali, os irmãos Phil e George Burbank protagonizam uma tensão crescente na tentativa de gerenciar a fazenda da família. Opostos, Phil é um caubói grosseiro, enquanto George é um homem tímido e educado. Quando George se casa e traz a mulher para viver com eles no rancho, Phil não mede esforços para que ela e seu filho, Peter, se sintam bastante desconfortáveis. A trama de Ataque dos Cães poderia ser um faroeste clássico, mas não era essa a intenção de Thomas Savage (1915-2003), autor do livro homônimo de 1967 que inspirou o filme de Jane Campion.
Nascido em 1915 na cidade de Salt Lake City, em Utah, o escritor se casou aos 24 anos com a também autora Elizabeth Fitzgerald. Os dois foram apresentados pelo pai da garota, o professor de literatura Brassil Fitzgerald, que deu aula para Savage na Universidade de Montana. Savage era gay, e, segundo relata o autor O. Alan Weltzien na biografia Savage West, de 2020, manteve casos extraconjugais com homens durante toda a vida. Sua esposa, inclusive, sabia sobre a sexualidade do marido antes mesmo do casamento. A relação entre eles, ao que tudo indica, não era ruim. Os dois tiveram três filhos e mantinham uma cumplicidade que alimentou a carreira de ambos. Elizabeth, não raro, atuava como editora das obras de Savage, e ela própria publicou nove livros ao longo da vida. O autor, no entanto, não deixou de registrar as dificuldades de manter-se no armário em suas histórias que, assim como em Ataque dos Cães, abusam dos estereótipos de masculinidade viril para explicitar a hipocrisia do interior americano no século XX.
O ambiente é familiar ao autor, mas não de uma maneira positiva. Quando tinha apenas 2 anos de idade, os pais se divorciaram e ele foi morar com a mãe em um rancho em Idaho. Aos 5, mudaram-se para a fazenda do padrasto, em Montana, mas nunca se sentiu pertencente àquele ambiente. Sua filha, inclusive, revelou que o pai odiava Montana e tentava ficar o mais longe possível de lá desde que foi embora, aos 22 anos. Não à toa, nas narrativas idealizadas por ele, a cidade não é pintada com bons olhos e é cenário recorrente de dinastias disfuncionais com caubóis influentes que esbanjam masculinidade tóxica.
Relativamente esquecido pela literatura, o autor não sobreviveu da escrita tão facilmente. Publicou sua primeira história em uma revista local e antes de estrear nos romances com The Pass — uma homenagem à mãe — em 1944, já havia trabalhado como ajudante de fazenda, soldador e funcionário de ferrovia. Assumiu um cargo de professor em Boston, onde ficou até 1947. No ano seguinte, lançou o segundo romance, Lona Hanson, que entregou rendimentos polpudos, incluindo a venda dos direitos à Columbia Pictures, que nunca chegou a fazer o filme, mas a venda garantiu que ele pudesse seguir se dedicando à escrita. Em 1953, publicou A Bargain with God, seu sucesso mais popular, que permitiu que, em 1955, ele deixasse as salas de aula e se dedicasse exclusivamente aos livros.
No total, o autor publicou 13 livros — Ataque aos Cães, lançado em 1967, foi o quinto deles, e é o mais bem avaliada pela crítica, embora na época tenha tido uma vendagem modesta. Ambientado em um rancho em Montana que faz alusão ao local onde ele cresceu, a obra bebe de elementos autobiográficos, mas é difícil apontar com certeza os limites entre realidade e ficção. Em uma coletiva sobre o filme, a diretora Jane Campion falou que o personagem Peter, no longa interpretado por Kodi Smit-McPhee, foi parcialmente inspirado em Savage. “Ele veio para o rancho de maneira semelhante a Peter — sua mãe se casou com Ed Brenner, que na verdade é a inspiração para Phil Burbank”, revelou ela, que também acredita que Savage tinha um tio que o humilhava. Campion ainda teve acesso a uma série de fotos de pessoas reais que inspiraram a história, incluindo um homem que os herdeiros de Savage acreditam ter dado origem a Bronco Henry, o mentor por quem o personagem de Cumberbatch era obcecado.
Diferente de Peter, o autor não era tão distante dos pastos como no filme. “Ele andava a cavalo, e a primeira coisa que escreveu foi sobre domar os mais ferozes”, disse Campion em entrevista à radio neozelandeza RNZ. A vivência do autor na corda bamba do pertencimento deu a ele uma visão original sobre a região, que se traduz em histórias de velho oeste que escancaram hipocrisias geralmente deixadas em segundo plano por autores que glamorizam a figura do caubói machão. Esse personagem estereotipado, aplaudido nos faroestes, é justamente o pesadelo do autor. “Ele deveria ocupar um lugar de destaque no lotado mapa literário de Montana”, disse o biógrafo ao jornal L.A Times. “Savage certamente tinha uma relação mais complexa com a literatura de faroeste do que os outros”, analisa Campion, que, agora, lança luz sobre a obra de um homem deixado às margens dos rebanhos literários.