Com 27 anos, 1,75 metro, 55 quilos, cabelos ondulados, olhos azuis e voz doce, a andaluza Angela Ponce é linda. Em junho, depois de vencer uma disputa com mais de 5 000 candidatas, ela sagrou-se miss Espanha. Ao vestir a faixa, fez história: foi a primeira transgênero a vencer o concurso espanhol de beleza, e com o título conquistou o direito, também inédito, de disputar o Miss Universo, marcado para o dia 16 deste mês na Tailândia. A presença de Angela no palco representa um marco decisivo, ao levantar discussões sobre gênero, diversidade e aceitação. O nome pelo qual ela se reconhece e que consta em sua documentação foi adotado ainda na adolescência. Há cinco anos, a menina que nasceu em corpo de menino passou por uma cirurgia de redesignação sexual. Foi o ponto-final de um processo iniciado muito antes.
Angela cresceu em Pilas, cidade de 14 000 habitantes na região de Sevilha, na qual não havia ninguém, até onde se soubesse, em seu colégio ou bairro, em situação parecida. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 0,5% da população mundial é transgênero. A criança recebeu tratamento especial na escola, dado aos alunos em situação de vulnerabilidade, como ciganos e filhos de pais recém-separados. Se havia dificuldades fora de casa, da porta para dentro sempre houve harmonia. Filha do meio de um casal dono de um pequeno restaurante, Angela diz nunca ter sofrido com a família. “Meus pais são super-heróis, eles me apoiavam em tudo”, afirmou a VEJA por telefone. “Se queria comprar uma boneca em vez de jogar futebol, eles nem piscavam.” Começou o tratamento hormonal aos 16 anos. “Sei que sou privilegiada”, afirma. “A realidade da população trans é cheia de opressão.”
Por conhecer as dificuldades de seus pares, ela tomou como obrigação estender a mão àqueles que nasceram em um ambiente de intolerância. Atua como voluntária da Fundación Daniela, em Madri, criada por uma mãe que lutou para que sua filha trans fosse aceita no colégio público onde estudava. “Damos palestras e apoio psicológico a crianças e pais que, muitas vezes, não sabem o que está acontecendo”, diz. Nessa jornada, Angela lembra com um misto de tristeza e alívio ter recebido um telefonema certa madrugada de uma jovem que pensava em suicídio (conseguiu demovê-la da ideia). A Espanha permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo desde 2004. Trans podem alterar o nome de batismo sem mover ação na Justiça.
“Meus pais me apoiavam quando eu queria comprar boneca em vez de jogar futebol”
Angela fez cirurgia para mudança de sexo e também colocou silicone nos seios. Ela jura pela Cher não ter afilado o nariz nem tirado costelas para afinar a cintura. Verdade seja dita: uso e abuso de cirurgias plásticas e procedimentos estéticos não seriam exclusividade de uma trans postulante a miss. São muitas as candidatas mulheres que colocam peito, bumbum, bochecha e boca para conquistar o sonho de ostentar uma faixa. Se participar do concurso tornou Angela exemplo de pioneirismo da classe LGBTQI, também atraiu críticas — sobretudo por parte das mulheres. Algumas dizem tratar-se de uma disputa inglória pelo fato de a candidata ter nascido em corpo de homem. “Respeito a decisão de tê-la na competição, mas não concordo. Acho que ela está em desvantagem”, diz a concorrente Valeria Morales, representante da Colômbia.
O ineditismo de haver uma transgênero em um concurso fundado em 1952 é reflexo dos tempos atuais. Ainda que seja televisionado ao vivo para mais de 100 países, esse tipo de disputa não desperta mais a curiosidade nem exibe o glamour do passado. A marca Miss Universo pertenceu por quase duas décadas ao hoje presidente americano Donald Trump. Ele vendeu os direitos do evento em 2015. Foi no domínio Trump que a regra do concurso mudou para incluir transgêneros. Isso se deu depois de a canadense transgênero Jenna Talackova ter sido impedida de participar do concurso global, em 2012.
Aqui, mulheres trans podem disputar o Miss Brasil. “Angela batalhou muito durante a transição e merece estar em um concurso em que se avalia a beleza, e não a profundidade do útero”, diz a modelo brasileira Lea T., ela própria transgênero. Angela vê avanços no combate ao preconceito. Ela já fez trabalhos para a grife Prada, mas reconhece que a maioria das marcas prefere manter distância. “Mas, quando vamos às lojas comprar, nenhuma grife vira as costas”, afirma.
Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612