Nos Estados Unidos dos anos 1960 e 1970, a soul music brigava de igual para igual com o rock nas paradas de sucesso e, ao lado do rhythm & blues, caminhava para se tornar a trilha da luta contra o racismo. Enquanto isso, a situação era bem diferente no Reino Unido. Por lá, os ritmos originários das comunidades de origem africana eram relegados a uma pequena cena no norte do país. Para piorar, a cena musical black era foco constante de batidas policiais e as reportagens dos tabloides quase sempre se referiam a esses lugares como antros de consumo de drogas. Na virada de 2022, felizmente, essa realidade mudou de forma notável. Uma nova leva de cantoras talentosas, filhas de imigrantes negros da África e do Caribe, está sacudindo o Reino Unido.
Little Simz: GREY Area (Digipak)
Com idade entre 20 e 40 anos, as jovens e poderosas Arlo Parks, Little Simz, Celeste e Yola têm se imposto cantando, justamente, os ritmos que marcaram a geração de seus pais: o soul, o R&B, o rap e o hip-hop. Essas artistas são faces de um fenômeno paradoxal. A mesma Inglaterra que no plebiscito de 2016 cedeu ao ímpeto nacionalista do Brexit se converteria, nos anos recentes, em um vibrante caldeirão multicultural. Arlo Parks resume o espírito de sua geração. Descendente de imigrantes do Chade e da Nigéria, a cantora e poeta de 21 anos é um manancial de influências que vão do escritor James Baldwin e do poeta Eileen Myles ao seminal músico de R&B Otis Redding, passando pelo rapper Frank Ocean. Trancada em casa durante a pandemia, Arlo deu vazão à sua criatividade musicando seus poemas, que falam da euforia da juventude e das desilusões da vida adulta. O resultado é um pop suave, emoldurado por uma voz rouca e melodiosa. Seu álbum de estreia, Collapsed in Sunbeams, foi um dos lançamentos mais elogiados de 2021. “Sinto que formamos uma cena musical original, especialmente entre as mulheres negras e jovens britânicas”, analisou a artista em entrevista a VEJA (leia na pág. 84).
O reconhecimento que as cantoras de soul e R&B ganharam no Reino Unido é, no entanto, relativamente recente. Se em meados do século XX Aretha Franklin já dominava as paradas nos Estados Unidos, no Reino Unido a primeira mulher a se projetar no soul foi Amy Winehouse. Isso, já no século XXI — e Amy nem era negra. Não à toa, a cantora mais velha da nova safra, Yola Carter, de 38 anos, precisou se mudar para os Estados Unidos para se fazer notar. Filha de imigrantes de Gana, na África (terra de seu pai) e de Barbados, no Caribe (terra da mãe), Yola já disse que foi “pressionada pela sociedade” a reprimir sua negritude e lamenta ter crescido sem exemplos de cantoras negras britânicas. Antes de fazer sucesso como cantora-solo, no início dos anos 2000, ela precisou vencer também a má vontade com seu trabalho: embora fosse uma das vocalistas do Massive Attack, a crítica da época insistia em classificá-la só como cantora de apoio da banda.
Foi apenas em seu segundo álbum autoral, Stand For Myself, lançado em 2021, que Yola ganhou fama mundial. O disco foi gravado em Nashville, berço da música country americana e onde ela mora desde 2018. O trabalho é uma bem-vinda mistura dos estilos de duas artistas essenciais do soul e do country americano, Aretha Franklin e Dolly Parton. Neste ano, Yola poderá ser vista ainda nos cinemas, na nova cinebiografia de Elvis Presley dirigida por Baz Luhrmann (de Moulin Rouge). No filme, ela interpreta Sister Rosetta Tharpe, uma cultuada cantora gospel dos anos 1930 e 1940.
Os exemplos máximos do intercâmbio cultural que resultou na música negra britânica dos últimos anos vêm de Little Simz e Celeste, ambas de 27 anos. Nascida em Islington, na Inglaterra, Little Simz tem como nome de batismo Simbiatu Abisola Abiola Ajikawo, e transpôs para o hip-hop e o rap a influência iorubá que herdou dos pais nigerianos. Essa herança produziu um ousado coquetel de ritmos que vão do afrobeat ao pop anos 1980. Nas letras, ela canta sobre a própria vida e lamenta do abandono do pai quando ainda era criança. Já Celeste é filha de pai nigeriano e mãe britânica. Nasceu em Los Angeles, mas foi criada em Londres. Seu disco de estreia, Not Your Muse, lançado também no ano passado, é fruto dessa mistura, com canções carregadas de influências que vão de Amy Winehouse a Ella Fitzgerald, sua grande inspiração. A voz marcante da cantora a ajudou a ser indicada ao Oscar em 2021, pela música Hear My Voice, do filme Os 7 de Chicago, na categoria de melhor canção original. Na música britânica de hoje, black is — definitivamente — beautiful.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771
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