Um cinema no Alabama retirou da programação. A Rússia estrilou e restringiu o filme, uma produção para toda a família, a espectadores de ao menos 16 anos. Singapura acusou desvio de “valores saudáveis”. A Malásia quis mutilar o longa. Mas, verdade seja dita, a entrada em cena, em A Bela e a Fera, do primeiro personagem oficialmente gay da Disney não justifica essa barulheira toda. Se LeFou (Josh Gad), hoje o principal assunto quando se fala do filme, não tivesse sua sexualidade propalada pelo diretor Bill Condon, ele não passaria, para boa parte dos espectadores, de um bajulador. O personagem parece menos um apaixonado do que um puxa-saco do patrão, o aristocrata bonitão Gaston (Luke Evans) – também o vilão da história por querer forçar a mocinha, Bela (Emma Watson), a se casar com ele.
É fato que Condon não prometeu nenhuma cena de sexo explícito. O que ele disse foi que LeFou era um sujeito que “uma hora queria ser o Gaston, outra hora queria beijá-lo”. O que não deixa de ser insinuante – alguém poderia esperar alguma investida de um sobre o outro. Mas não há qualquer coisa parecida no filme. O único momento em que se pode dizer que pinta um clima entre Gaston e LeFou é ao fim de uma sequência rodada dentro de uma taverna, similar à da animação lançada pela Disney em 1991.
Gaston está sentado, quase deitado na cadeira, chateado porque Bela o rejeita. Para animá-lo, LeFou sobe em cima de uma mesa e se põe a cantar – o filme é um musical. A letra é toda em louvor a Gaston, a quem LeFou atribui força, inteligência, habilidade e um “corpo atlético”, como havia dito em uma cena anterior, ao tentar dissuadir o chefe de perseguir Bela, uma amante de livros que não combinaria com ele.
Ele se humilha por Gaston. Que, satisfeito com o número, o elogia naquele que é o tal momento gay do filme: “Como ninguém ainda te fisgou, LeFou?”
“Who plays darts like Gaston? / Who breaks hearts like Gaston? / Who’s much more than the sum of his parts like Gaston? […] Who has brains like Gaston, entertains like Gaston? / Who can make up these endless refrains like Gaston?”, canta LeFou (“Quem joga dardos como Gaston? Quem parte corações como Gaston? / Quem é muito mais do que a soma de suas partes como Gaston? […] Quem tem cérebro como Gaston, entretém como Gaston? Quem pode inventar esses refrões sem fim como Gaston?”). Em outro trecho, o fiel serviçal elogia o pescoço troncudo do amo. “No one’s quick as Gaston, no one’s neck’s as incredibly thick as Gaston’s.” (“Ninguém é rápido como Gaston, ninguém tem um pescoço tão incrivelmente grosso como o de Gaston.”)
A letra não é exatamente a mesma da animação – houve partes que ficaram de fora em 1991, escritas por um compositor morto no mesmo ano, Howard Ashman, e que Condon, ao saber que existiam, decidiu usar para dar um frescor à cena. Confira abaixo as duas versões:
Mas mesmo a versão atual, com a menção aos corações partidos por Gaston, deixa aquela impressão causada pelo desenho de 26 anos atrás: a de que LeFou é um adulador capaz de se submeter ao ridículo para agradar ao chefe. Ele chega admitir que é analfabeto – e por isso não sabe soletrar o nome do esnobe ricaço. Ele se humilha por Gaston. Que, satisfeito com o número, o elogia naquele que é o tal momento gay do filme: “Como ninguém ainda te fisgou, LeFou?”. Os dois se olham, rola um rápido silêncio constrangedor, e então o diálogo e o filme são retomados. E nada mais que possa de fato indicar um romance entre eles vai aparecer.
A partir daí, o roteiro mostra Gaston no encalço de Bela, que se adapta pouco a pouco à vida no palácio da Fera (Dan Stevens). O belo se vilaniza gradualmente, e chega a ameaçar o pai da mocinha, que é contra o casamento dos dois, para ficar com ela. LeFou segue ao seu lado, submisso, subalterno.
Spoiler. Para completar a ambiguidade do quadro, no desfecho do filme, depois da morte do encapetado Gaston, LeFou é visto dançando com uma moça, na festa de casamento de Bela e do príncipe, já metamorfoseado em humano outra vez. Outro spoiler. Se alguém se decepcionou porque esperava ver mais do que uma tímida faísca no propalado primeiro romance gay da Disney, pode ter uma nova frustração aqui. A Fera, um monstro enorme e forte, viril como um touro, dá lugar a um príncipe quase franzino, frágil perto da dimensão bestial que possuía, e com um cabelinho de He Man despenteado. Apequenado. Mas também uma forma de questionar a verdadeira beleza.