Em 2016, Bárbara Paz arrebanhava elogios por sua atuação em Gata em Telhado de Zinco Quente, adaptação nacional da peça do americano Tennessee Williams. No palco, a atriz discorria sobre um dilema familiar fictício: o sogro de sua personagem padecia de um câncer terminal. Quando se despia do papel e voltava à vida real, o tema ainda a cercava. “Câncer e morfina eram palavras que eu ouvia no trabalho e fora dele”, conta Bárbara. Seu marido, o cineasta Héctor Babenco (1946-2016), lutava então havia três anos com uma recidiva agressiva da doença, que o acometera pela primeira vez em 1991. Na última cirurgia do diretor, para o implante de uma bomba de morfina para aplacar suas dores, Bárbara foi ao teatro com a aliança dos dois: o anel não podia entrar na sala de operação. Quando retornou ao hospital, ela colocou-o de volta na mão do marido. Sonolento e risonho, Babenco questionou: “Você vai me amarrar de novo?”. Ela respondeu: “Sempre”. Essa foi a última conversa entre eles.
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A iminência do luto já vinha sendo processada por Bárbara havia anos. Em 2010, ela começou a registrar cenas do que viria a ser um documentário sobre (e para) Babenco. Uma despedida iniciada em um hospital da França, quando o diretor de Pixote, O Beijo da Mulher-Aranha e outros filmes notáveis passou um mês internado no que parecia ser seu adeus. “Tive medo de não dar tempo de fazer o filme, então comecei a rodar ali mesmo”, relata ela sobre as cenas que integram o documentário Babenco — Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou. Feito em preto e branco, mesclando imagens e falas do diretor na intimidade com trechos de sua obra, o filme evidencia a lucidez de Babenco em relação à própria finitude. “É um poema, uma declaração de amor sensível e de luz própria”, analisa a cineasta Marina Person, amiga do casal, que apresentou Bárbara ao futuro marido em 2007, em Paraty.
Quando se apaixonou pelo diretor 28 anos mais velho que ela, Bárbara ainda não sabia da enfermidade de que ele sofria. Quando soube, não se afastou. “Ele dizia que queria uma mulher, não uma enfermeira. Mas não me importava de cuidar dele”, diz. A relação era alimentada pela paixão em comum pelo cinema e o passado de agruras que ambos enfrentaram. Bárbara ficou órfã de pai aos 5 anos e foi criada pela mãe — que, com grave problema no rim, dependia de hemodiálise. “Eu conheci a vida cuidando do outro”, conta ela.
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O amadurecimento precoce foi intensificado pelas dificuldades financeiras. Na adolescência, Bárbara foi trabalhar em uma fábrica de calçados, depois em lojas até engatar a carreira de modelo. Com a morte da mãe, quando tinha 17, ela deixou Campo Bom (RS) rumo a São Paulo, onde ingressou no teatro. No mesmo ano de 1992, sofreu um acidente de carro que lhe deixou cicatrizes no rosto — marcas que fizeram com que fosse rejeitada em testes. Uma inesperada virada veio em 2001, quando venceu o reality Casa dos Artistas, no SBT. De lá para cá, estabeleceu-se como atriz. Agora, aos 46, alça novos voos.
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Primeiro longa-metragem dirigido por ela, o documentário teve estreia de luxo no Festival de Veneza, de onde saiu premiado. Foi indicado pelo Brasil ao Oscar de filme internacional e documentário, mas eliminado na etapa que selecionou os finalistas, nesta semana. “A jornada até aqui já valeu a pena”, diz Bárbara. Sem apoio da Ancine, ela fez uma vaquinha para divulgar o filme no exterior.
Além de abrandar o luto, a produção ajudou a atriz a desvendar o passado do marido — como a tática de esconder a origem judaica para não sofrer preconceito na Argentina, onde nasceu. Ou seu inusitado trabalho como vendedor de túmulos no Brasil, onde se radicou e, por um roubo de cheques, passou um tempo na prisão nos anos 70. No processo do documentário, Bárbara se descobriu cineasta: tem dois outros projetos na manga. Um deles, sobre a própria jornada. “A tragédia faz parte da minha vida. Aprendi que a perda não se supera, se transforma.” No caso dela, a dor se converteu em arte.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725
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