Deitada no consultório de seu médico judeu, a paciente alemã engata um monólogo que expõe seu mal-estar não propriamente físico, mas psicológico. Após algum suspense, o Dr. Seligman ouve a revelação: ela sente desejos eróticos por um polêmico homenzinho de bigode. Ninguém menos do que Adolf Hitler. Sim, o mote do romance A Consulta, recém-lançado no país pela editora Fósforo, é chocante. Mas a autora, Katharina Volckmer, ela própria alemã e radicada em Londres, trata desse e de outros tabus com inteligência, ironia, humor e, principalmente, empatia. A escritora de 35 anos passa com louvor no teste do primeiro livro: A Consulta é incrivelmente ajustado. Nada falta ou sobra na obra ligeira ambientada nos dias de hoje e que aborda um tema delicado — o sentimento de culpa dos alemães em relação aos judeus.
Mesmo amplamente documentado, o Holocausto vem sendo negado; e o nazismo ressurge em comentários de TV, de podcast e até num vídeo do ex-secretário nacional de Cultura. A posição adotada pela autora é uma resposta à nefasta onda global de revisionismo, que “interpreta” (entre muitas aspas aqui) a história segundo a conveniência ideológica de cada um. Mais honesto intelectualmente, um movimento da atual geração empenha-se em compreender mais a fundo o genocídio cometido pelos nazistas — não só iluminando novas facetas históricas, mas suas cicatrizes morais.
E elas são muitas. A narradora sem nome do livro de Katharina Volckmer (leia a entrevista abaixo) explica que, como parte do esforço de desnazificação da Alemanha, ela cantava canções em hebraico na escola e tinha aulas sobre os crimes nazistas. “Mas nunca estivemos de luto; no máximo, interpretamos uma nova versão de nós mesmos. Nunca concedemos a eles o status de seres humanos de novo, nem permitimos que interferissem em nossa versão da história”, fulmina. O tema também ganha novas nuances no excelente Os Amnésicos, de Géraldine Schwarz, lançado pela editora Âyiné. Jornalista e historiadora pela Sorbonne e pela London School of Economics, Géraldine vai atrás das próprias origens (ela é filha de pai alemão e mãe francesa) para escarafunchar uma ferida ainda longe de ser curada: a participação das pessoas comuns nas atrocidades da Alemanha de Hitler e no suporte ao regime colaboracionista da França de Vichy.
Apenas uma pequena parcela dos quase 70 milhões de alemães à época da II Guerra matou com armas ou “com canetas” (como fizeram os burocratas do regime). A imensa maioria dos civis não era filiada ao Partido Nazista, nem participou ativamente da guerra. Mas essas pessoas comuns não só permitiram passivamente como, em muitos casos, envolveram-se no horror. O avô de Géraldine já era velho para servir no Exército e não pegou em armas. Em sua consciência, acreditava não ter feito nada de errado. Mas ele comprou por um preço abaixo do valor de mercado a empresa de um judeu expulso da Alemanha.
Apoiando-se em entrevistas e farta bibliografia, a autora mostra como milhões de pessoas testemunharam perseguições, viram sinagogas incendiadas e lojas de judeus vandalizadas. O país vivia sob ditadura, com a imprensa censurada, mas “o desconhecimento do objetivo preciso das deportações de judeus não exime a maioria do povo alemão de sua responsabilidade”. Sincera, Géraldine questiona-se sobre o que teria feito no lugar dos antepassados. “Nunca saberei”, admite. E emenda sábias palavras do historiador Norbert Frei: “O fato de não sabermos como teríamos nos comportado não significa que não saibamos como deveríamos ter nos comportado”. A coragem das duas autoras não sana os problemas do passado e do presente — mas ajuda a apontar um futuro.
“Não queriam publicar meu livro”
A autora alemã Katharina Volckmer fala sobre o controverso A Consulta.
Seu romance trata de temas delicados para uma obra de estreia. Por que essa opção? Os temas me escolhem. Enquanto escrevia, não achei que fosse um texto tão provocativo. Mas, quando o livro ficou pronto, percebi que algumas pessoas tinham reações estranhas.
Que tipo de reação? O retrato de um Hitler sexy, por exemplo, foi um dos motivos para os editores relutarem em publicar meu livro na Alemanha. Ninguém queria que saísse, mas saiu. Houve reações também contra meu senso de humor. Muita gente afirmou que determinados temas nunca são engraçados.
Afinal, qual o papel do humor na obra? Costumo prestar atenção nas pessoas e nos relacionamentos humanos. Podemos alcançá-las de diferentes maneiras. Dá para fazê-las chorar, mas não é o mesmo efeito de fazê-las rir. Isso as leva a dar um passo atrás e pensar: “Será que eu posso rir disso?”. Você nunca sabe o que acontece depois da risada.
Com o retorno do populismo de extrema direita, vemos manifestações nacionalistas, xenófobas e antissemitas pelo mundo. Como avalia isso? É um enorme problema. Mas o assunto tem sido tratado como um exercício escolar, sabe? De tempos em tempos homenageamos as vítimas e dizemos quanto sentimos por isso. É preciso ter conversas mais sérias, e espero que o livro ajude nisso. Eu mesma tive ótimas conversas com leitores judeus de várias partes do mundo.
Publicado em VEJA de 1 de junho de 2022, edição nº 2791
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