Entre os parcos documentos que vislumbram quem foi William Shakespeare (1564-1616), o mais revelador é seu testamento. Com três páginas, a declaração lista familiares, colegas do teatro e até vizinhos para quem ele deixou bens que vão de somas de dinheiro a roupas. O documento traz um detalhe peculiar: sua esposa, Anne Hathaway (1556-1623), é citada uma única vez. Shakespeare deixou para a mãe de seus três filhos uma second-best bed, ou seja, sua segunda melhor cama. O aparente desdém alimentou por séculos a ideia de que o casamento de 34 anos do bardo teria sido miserável: oito anos mais velha que ele, Anne foi acusada de ter dado um “golpe da barriga” para se casar com o rapaz, filho de um respeitado comerciante. A má qualidade da vida matrimonial do autor é um dos mitos que a pesquisadora Lena Cowen Orlin pretende derrubar com o livro The Private Life of William Shakespeare (A Vida Privada de William Shakespeare), que será lançado em agosto pela editora da Universidade de Oxford (e ainda sem chegada prevista ao Brasil).
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Professora de literatura inglesa, a americana de 68 anos é visitante regular de Stratford-upon-Avon, onde Shakespeare nasceu e morreu. Integrante do Shakespeare Birthplace Trust, instituição responsável pelo legado do bardo, Lena deixou de lado a análise das peças, sua especialidade, para observar minuciosamente o ambiente ao redor do poeta. Ao ler dezenas de outros testamentos locais, a acadêmica percebeu que era comum na época o marido apontar os móveis específicos destinados à esposa — que, pela lei, era automaticamente herdeira de um terço dos bens da família. Camas eram itens luxuosos, tanto que a “melhor cama” da casa era destinada às visitas. A segunda melhor cama era a do casal e carregava consigo um apelo simbólico: além de ser o móvel onde os dois dormiam juntos, era onde as mulheres davam à luz. O que parecia ser uma desfeita, então, revelou-se um mimo. “Essa descoberta me motivou a investigar com profundidade a vida pessoal de Shakespeare”, disse Lena a VEJA.
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Entender quem foi o homem além da obra se revelou uma tarefa saborosa com um quê detetivesco. Na última década, a pesquisadora devotou boa parte de seu tempo ao estudo da igreja Holy Trinity, em Stratford, onde Shakespeare foi enterrado em 1616, aos 52 anos. Ali fez uma descoberta que lança luz sobre um tema controverso: qual era, afinal, a verdadeira aparência física do autor. O rosto de Shakespeare é retratado apenas em obras sem procedência definida ou póstumas — como um belo quadro do alemão Louis Coblitz (1814-1863) em exposição no Palácio de Versalhes e feito mais de 200 anos após sua morte. Por muito tempo, o busto sobre seu túmulo foi tido como uma homenagem extemporânea e de mau gosto. A pesquisadora, contudo, propõe uma tese singular: a horrenda efígie, que no passado foi desancada por um intelectual como a imagem de um “autossatisfeito açougueiro de porcos”, seria, na verdade, a mais fiel representação de Shakespeare. Lena descobriu que ela foi feita pelo escultor Nicholas Johnson, especialista em memoriais que teve um ateliê próximo ao Globe Theater, em Londres, na época em que Shakespeare apresentava ali suas peças. Só o fato de o artista ter conhecido o autor em vida faz da estátua o retrato mais próximo de como ele era de fato. Lena vê indícios ainda de que Shakespeare acompanhou a produção de seu memorial, um hábito da época.
Para além de fidedigna, a imagem o apresentaria como ele desejava ser lembrado: um poeta com a pena na mão. Na visão de Lena, a revelação não só soluciona o mistério sobre sua aparência, como ajuda a enterrar de vez a delirante teoria conspiratória que questiona a autoria das obras célebres que levam seu nome, como Romeu e Julieta, Rei Lear e Hamlet. Os argumentos são elusivos e até preconceituosos, como a sugestão de que um homem provinciano e sem educação universitária seria incapaz de escrever textos tão extraordinários. “Se gênios fossem fruto apenas da educação, existiriam muitos Shakespeares na história”, diz Lena. Mesmo com a ressalva, a pesquisadora destaca que o busto está vestido com uma bata característica da Universidade Oxford, um indicador de que o bardo teve algum tipo de contato com uma educação superior, sim.
A hipótese de que Shakespeare teria encomendado a própria efígie mortuária tem outra decorrência: o poeta pode ser o autor de seu epitáfio. O texto, de fato, tem uma veia poética condizente. Um verso diz: “Bendito seja o homem que poupar estas pedras, e amaldiçoado seja o que mover os meus ossos”. A praga tem afastado pesquisadores que gostariam de exumá-lo. Seja lá o que o futuro reserva ao passado de Shakespeare, Lena não teme que ele seja “cancelado”. “O que Shakespeare fez é mais importante do que o que ele era. Sua obra vai sobreviver.” Ser ou não ser, eis a questão.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742
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