Em 2009, após meses de negociação com a Funai e de uma rigorosa quarentena, Sebastião Salgado foi finalmente autorizado a visitar a tribo dos zoés, que vivem a 300 quilômetros de Santarém, no Pará. Em seu contato inicial com os indígenas conhecidos pelos adornos de madeira nos lábios, Salgado entrou numa saia-justa ao contar uma simples piada: então aos 65 anos (hoje ele tem 77), o fotógrafo mineiro narrou a lorota de que dominara uma onça com as próprias mãos. Os zoés não entenderam a história. Isolados do mundo exterior até trinta anos atrás, quando um surto de gripe causado por missionários americanos exterminou um terço da população, esses índios são pacíficos, e a mentira não tem espaço em sua cultura. Mas, quando precisam, eles têm seu modo de dar um jeitinho. Ypó, um deles, ficou amigo do fotógrafo e insistiu que ele lhe desse seu canivete suíço. Salgado negou, já que a Funai veta presentes aos indígenas. Ypó então sugeriu ao fotógrafo que não precisava lhe dar o utensílio: bastaria jogar fora que ele pegava. Quando o avião levantasse voo, Salgado deveria lançar o canivete pela janela lá do alto que o índio acompanharia o trajeto e encontraria a ferramenta. Ypó, afinal, conhecia cada canto da floresta.
Salgado coleciona histórias saborosas como essa desde meados dos anos 80, quando visitou pela primeira vez uma aldeia, para fotografar os ianomâmis. De lá para cá, retornou dezenas de vezes para captar imagens de outras doze tribos e também, é claro, da imensidão da selva, com seus rios, árvores e montanhas. Nos últimos sete anos, suas visitas — quase todas antes do governo Bolsonaro — tornaram-se mais frequentes. As imagens flagradas por suas lentes agora ilustram o belíssimo livro Amazônia, da editora alemã Taschen (à venda no Brasil, em inglês, por 975 reais; a versão em português sai em setembro). Recentemente, as fotos ganharam uma deslumbrante exposição em Paris, que aportará em São Paulo em janeiro de 2022 e, alguns meses depois, passará pelo Rio de Janeiro.
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Por quatro décadas, Salgado não só fotografou a Amazônia com uma excelência reconhecida globalmente: acumulou um conhecimento antropológico das belezas e mazelas da região. Transformou-se em testemunha da devastação e um ativista respeitado entre celebridades e políticos do mundo inteiro. “Nesse trabalho, eu quis fotografar a Amazônia viva. A Amazônia morta, destruída pelo garimpo e pelo fogo, eu não procurei”, disse Salgado a VEJA de Paris, onde mora, em entrevista por videoconferência (leia mais aqui).
Além dos retratos dos índios, Salgado fez impressionantes registros aéreos a bordo de aviões do Exército, instituição fundamental para chegar aos pontos isolados da floresta. “A maioria das fotos da Amazônia é feita das bordas. Poucas aeronaves sobrevoam o centro da floresta”, diz ele, que observou imensos maciços rochosos, como o Pico da Neblina, o mais alto do Brasil, e também os “rios aéreos”, nuvens colossais criadas pela concentração de umidade gerada por árvores e rios. “A base da nossa sociedade cristã é o Paraíso. E a Amazônia é o Paraíso na Terra”, afirma. Suas imagens espetaculares não deixam dúvidas a esse respeito.
Publicado em VEJA de 16 de junho de 2021, edição nº 2742
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