O anúncio “bom mesmo é ser minoria”, feito em 1969 pela fabricante brasileira de automóveis Puma, foi a sacada da empresa para exaltar o lançamento do inovador Puma GT 1500. Eram produzidas apenas duas unidades por dia e cada uma delas custava uma pequena fortuna. O sucesso da propaganda fez parte de um processo que mudou a forma como o público enxergava o carro, que passou a ser sinônimo de conquista e status. Meio século depois, o objeto de desejo entrou em declínio: é mais fácil alugar ou usar um aplicativo de transporte do que ter uma despesa de mais de 1 tonelada na garagem. Nesse cenário, outro veículo surge como a solução de luxo para quem quer se locomover no dia a dia: bicicletas elétricas de alta performance, agora produzidas pelas montadoras de veículos automotores.
Os novos modelos de bicicletas vêm com motor elétrico, bateria e equipamentos de última geração, que permitem que o usuário se desloque pela cidade sem fazer muito esforço. Uma nova minoria desfruta dos avanços tecnológicos das electric bicycles, ou e-bikes, bicicletas elétricas fabricadas por multinacionais do setor automobilístico para atender a um nicho de mercado que pode vir a ser um segmento amplo e pujante antes do fim desta década.
Uma das novidades do setor vem da Mercedes-Benz: a EQ Formula E Team eBike, lançada no fim do ano passado. Trata-se de um modelo de 17 quilos, alimentado por uma bateria com autonomia de 100 quilômetros, mais do que o suficiente para uma ida e volta da casa ao trabalho. O motor elétrico permite acelerar até 32 quilômetros por hora. A versão mais barata sai por 17 000 reais, mas o modelo top de linha pode custar quase três vezes mais. Já a Peugeot Cycles tem um portfólio bem maior — inclusive pela tradição da marca francesa em bicicletas —, com sessenta modelos disponíveis, metade deles e-bikes feitas com material de alumínio ou de fibra de carbono. O preço varia de 7 700 a 40 000 reais.
A Jeep, por enquanto, tem apenas um modelo elétrico, somente disponível no exterior. Um produto licenciado pela marca com duas opções de motor, porém mais potentes que a média de mercado. É quase uma motocicleta com seus dez níveis de assistência no pedal, câmbio de nove marchas e freios a disco hidráulicos de pistão. Dá para ir longe com ela por 31 000 reais. Seguindo por outro caminho, a lendária fabricante de motocicletas Harley-Davidson, que nos últimos cinquenta anos se posicionou como uma marca diferenciada para aqueles que gostam de pegar uma estrada no fim de semana, decidiu criar uma empresa separada, a Serial I Cycle, para centralizar a produção de suas e-bikes. O nome da nova companhia e o design da bicicleta inaugural, com estrutura preta, pneus brancos e detalhes de couro, remetem à Serial Number One, moto mais antiga da Harley-Davidson, inventada em 1903.
Ainda que a substituição completa de um veículo por outro seja impraticável, é fato que as montadoras estão olhando para o futuro próximo. Estudos realizados na Europa apontam que as vendas de bicicletas elétricas devem saltar de 3,7 milhões, em 2019, para 17 milhões, em 2030. Se a perspectiva se confirmar, o número total de bicicletas, comuns ou elétricas, vendidas a cada doze meses atingirá a casa de 30 milhões, o que representa mais do que o dobro do número de carros registrados anualmente na União Europeia. O ciclismo é uma das indústrias mais aquecidas do mercado na Europa neste momento e tudo indica que sua expansão para outros continentes é só uma questão de tempo, inclusive no Brasil.
Atualmente, e-bikes fabricadas no mercado brasileiro não aparecem no horizonte e mesmo as versões importadas não chegam pelas concessionárias. Se o consumidor quiser uma para si, precisa importar o produto por conta própria ou se arriscar com terceiros. Márcio Filho, diretor de suporte ao cliente da BMW, dá uma pista do motivo de o Brasil estar um passo atrás da nova tendência: “A procura por bicicletas cresceu nos últimos anos e foi acentuada pela pandemia. Não trouxemos as elétricas para o Brasil ainda porque temos de oferecer uma solução completa de suporte, e precisa haver volume para justificar isso”. A empresa alemã, que produz bicicletas há setenta anos, dobrou as vendas dos modelos convencionais no Brasil no ano passado. Mesmo sem opções elétricas, o mercado no país acompanhou o crescimento mundial, principalmente nos meses de pico da pandemia.
Pesquisa recente do Datafolha revelou que a bicicleta é a preferência de 38% dos brasileiros que não têm carro próprio, à frente de aplicativos como Uber, táxis e transporte público. Depois de muito tempo marginalizados no trânsito, principalmente nas grandes cidades, os ciclistas começam a sentir que bom mesmo é ser minoria. Só falta um pouco de eletricidade.
Publicado em VEJA de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722