Gal Costa tinha um grande plano para 2020: ela pretendia celebrar com os fãs seus 75 anos. Em vez disso, assim como 99,9% do planeta, a cantora baiana teve de cancelar a festa (a data exata seria 26 de setembro) e se isolar na sua residência, em São Paulo, por causa do coronavírus. Mas a quarentena foi apenas física. Gal, que se fez na MPB nos tempos do vinil e da fita cassete, hoje aprendeu a usar as redes sociais para criar sintonia com as novas gerações. Então veio o estalo: e se ela celebrasse seu aniversário com um novo álbum? Um repertório de inéditas estava fora de cogitação porque exigiria ensaios, idas ao estúdio e, claro, aglomerações. A solução estava em seu vasto repertório, o mesmo que os fãs mais jovens estavam buscando nos serviços de streaming. Da ideia surgiu o projeto Gal 75, com faixas produzidas on-line em seis cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Vitória, Lisboa, Madri e Los Angeles. Funcionou assim: do lado de cá, Gal gravava sua voz; do lado de lá, parceiros convidados faziam a produção das faixas, imprimindo os próprios estilos aos clássicos da artista.
Pela primeira vez em seus mais de cinquenta anos de carreira, ela se cercou de dez cantores homens, todos bem mais jovens (a maioria tem menos de 30 anos). Em duetos, Gal e os convidados reinterpretaram seus sucessos. Com tudo pronto, em novembro, ela passou a lançar o pacote a conta-gotas, um single por semana. Na sexta-feira 12, o álbum Nenhuma Dor enfim aporta nos serviços de streaming (e também nos velhos formatos de CD e LP).
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Ainda que de maneira despretensiosa, o trabalho acabou coroando um bem-sucedido processo de, com todo respeito, “retrofit” — nome que se dá às operações de rejuvenescimento de itens clássicos, de carrões dos anos 50 a edifícios antigos. Gal, afinal, sempre foi uma artista dada a guinadas e sacudidas musicais. Agora, colhe os frutos de mais uma mudança que se iniciou em 2015, resultado da parceria com o produtor Marcus Preto. “Tenho vontade de ousar. É uma coisa de ímpeto mesmo, de desejo, da minha personalidade. Gosto de me arriscar”, disse ela a VEJA (leia a entrevista).
Gal soube absorver a juventude dos convidados — que vão de Seu Jorge a Rodrigo Amarante (Los Hermanos), passando por “descolados” como Rubel — sem deixar de ser fiel ao espírito das canções. Em Paula e Bebeto (1978), ela divide espaço com o rapper Criolo — que, com sua voz aguda, remete à interpretação original de Milton Nascimento. Já Baby, de 1969, regravada agora com Tim Bernardes, ganhou tom intimista, potencializado pelo jeito de cantar sussurrado do parceiro. Só Louco, de Dorival Caymmi, ficou mais pop com a interpretação minimalista do cantor e multi-instrumentista Silva. “Não sou só uma Gal. Sou todas as ‘Gals’. A Gal do rock, da bossa nova, da Tropicália, da MPB. Sou todas elas”, diz a artista.
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Na quarentena, ela se dividiu entre a gravação remota do disco e a rotina frugal de acordar cedo e cuidar do filho, Gabriel, adotado em 2007 e hoje com 15 anos. Mas outro assunto galvanizou sua atenção: a situação política do país. A artista estará no documentário O Silêncio que Canta por Liberdade, que narra os problemas com a censura à música na ditadura militar. Gal mudou — mas sua alma de tropicalista engajada continua a mesma.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725
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