Após descobrir que seu ex-namorado ficou noivo de uma colega de trabalho, Takako pede demissão para não topar com o casal nos corredores da empresa. Desolada e sem perspectiva, a jovem de 25 anos recebe a inesperada proposta de trabalhar com um tio excêntrico e distante, Satoru, dono de uma livraria capenga em Jinbôchô — bairro de Tóquio tomado por sebos e cafés. Apesar da relutância em reconstruir sua relação com o parente e da aversão à leitura até então, Takako encontra forças para se reerguer com a ajuda dos livros empoeirados e das pessoas peculiares da pequena comunidade japonesa. Com esse enredo prosaico, o romance Meus Dias na Livraria Morisaki, de Satoshi Yagisawa, chegou longe. Publicada no Japão em 2009, a obra foi traduzida para mais de vinte línguas. Quando enfim desembarcou no país, em novembro do ano passado (pelo selo Bertrand Brasil, da Record), já exibia a aura de fenômeno editorial: o livro foi um dos pioneiros do subgênero conhecido como healing fiction, ou ficção de cura, tendência que vem atraindo leitores ao redor do mundo.
O termo surgiu pela primeira vez em uma publicação de 1998 do psicólogo americano James Hillman (1926-2011), que estudava narrativas literárias de propriedades supostamente terapêuticas. A expressão logo foi tomada de empréstimo pelo mercado livreiro para classificar obras de ficção que se valem de um cenário simples e inspirador — pode ser uma livraria simpática, uma biblioteca ou o mero balcão de um café descolado — para tecer narrativas de superação e reencontro do amor-próprio. Em suma, algo que una uma história fácil de digerir a uma pitada disfarçada (mas nem tanto) de autoajuda motivacional.
Num mundo cheio de pessoas ansiosas em razão de fatores tão diversos quanto as sequelas psicológicas da pandemia ou o consumo desenfreado das redes sociais, a procura por tramas cotidianas e descomplicadas veio ocupar espaço rentável no mercado. A onda importada é propulsionada principalmente por escritores orientais. O também japonês Toshikazu Kawaguchi virou best-seller com a série Antes que o Café Esfrie. A franquia já vendeu mais de 3 milhões de cópias de seus três volumes no mundo — sendo 200 000 só no Brasil, segundo a editora Valentina, que publica a versão nacional. Na história, pessoas vão a uma cafeteria de propriedades mágicas, que lhes permite viajar ao passado enquanto tomam uma xícara de café, mas sob a condição de que não será possível alterar o futuro — os frequentadores vão ao encontro de entes queridos apenas para buscar certas respostas. A obra virou filme de sucesso no Japão em 2018.
Não é difícil detectar o apelo universal desses romances. Com sua simplicidade e aceno a uma vida mais tranquila, eles atraem jovens de países asiáticos em que, apesar do nível educacional altíssimo, o desalento econômico é uma triste realidade para muitos. Bem-vindos à Livraria Hyunam-dong, da sul-coreana Hwang Bo-reum e publicado aqui pela Intrínseca, vendeu mais de 250 000 cópias só em seu país de origem. No enredo, a personagem Yeongju realiza o sonho de abrir uma livraria após se sentir frustrada com a carreira e a pressão de ser bem-sucedida. “Muitos coreanos expressaram que a obra os ajudou. Talvez seja porque poucas pessoas na nossa cultura contem histórias assim”, diz Hwang — que, além de escritora, é engenheira de software. Para a autora, o ponto de vista coreano de sua criação, em que a excelência acadêmica e profissional é cobrada pelos pais desde a infância, tocou também o público do Ocidente.
Originalidade nos cenários não é, pelo jeito, uma preocupação aqui: bibliotecas, por exemplo, são tema de mais de um sucesso do gênero. A japonesa Michiko Aoyama já vendeu mais de 250 000 cópias de A Biblioteca dos Sonhos Secretos, que reúne histórias de personagens conectados entre si por livros. Escritores não orientais também tiram sua casquinha. A Biblioteca da Meia-Noite, do inglês Matt Haig, acumula 600 000 unidades vendidas e figura há 89 semanas nos Mais Vendidos de VEJA. Nele, uma mulher de 35 anos está prestes a cometer um ato extremo, até que encontra em uma biblioteca a possibilidade de experienciar todas as vidas que poderia ter tido. O best-seller é exemplo de outra tática vitoriosa das obras de cura: a categoria se destaca pelas capas com estética oriental de cores claras e traços minimalistas.
Para especialistas do setor, o crescimento do nicho expõe uma mudança no humor dos leitores. “São obras sensíveis que nos convidam a refletir”, pontua Talitha Perissé, editora da Intrínseca. “O fenômeno ganhou tração porque, em tempos aflitivos, as pessoas acham nessas obras tranquilidade, conforto e redenção”, completa Cassiano Elek Machado, diretor do Grupo Record. A literatura que cura a alma também faz um bem danado, claro, aos balanços das editoras.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885