Dona Helena é uma senhora paranoica — e ativa divulgadora de fake news. Nos vídeos conspiratórios que envia à família, ela garante que a “pandimia” é uma “orquestração da esquerda”, que a Nasa e o Vaticano escondem uma vacina contra o coronavírus e que os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) estão errados: “O Almir, porteiro do prédio, tá fazendo live no condomínio e disse que as estatísticas do Bloco C e D não batem nada com a tal OMS”. Ofegante, ela garante que suas fontes são confiáveis — entre elas, a faxineira de Drauzio Varella e uma professora de Nova Iguaçu. “Pro corona entrar ali, tem de ser escoltado. Os micróbios lá são tudo de facção criminosa”, diz ela, sobre a cidade da Baixada Fluminense. Cercada por itens esgotados nos supermercados, como rolos de papel higiênico e álcool em gel, Dona Helena grava seus vídeos iluminada apenas por uma lanterna (acender a luz a deixaria exposta ao maldito vírus). A personagem do sarcástico Fábio de Luca, comediante do Porta dos Fundos, anima curtos vídeos de três minutos. Nos comentários, entende-se seu apelo: “Todo mundo tem uma Dona Helena em sua vida”.
Para além de afiadíssimo, o esquete exemplifica os novos rumos do humor em tempos de coronavírus. Com gravações suspensas a perder de vista, comediantes nacionais e estrangeiros estão tendo de se virar nos 30: eles agora abdicam de cenários e produções coletivas em prol de vídeos caseiros e solitários — o máximo de interação se dá via bate-papos em videochat. A precariedade, contudo, não tem se revelado inimiga, mas aliada: o humor vem exibindo uma notável capacidade de se adaptar à fase atual do entretenimento. De Marcelo Adnet e Leandro Hassum aos americanos do Saturday Night Live, os artistas estão redescobrindo a simplicidade e empreendendo um retorno (ainda que forçado) ao minimalismo que só encontrariam num palco de stand-up. Agora, porém, o teatro é a internet, e as interações, ilimitadas.
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Com a invasão da realidade pela pandemia, os humoristas logo perceberam que a própria limitação imposta pelo isolamento social era a chave para se reconectar com a audiência. A nova leva de programas traz criações registradas em vídeos na vertical, apropriados para a tela do celular, e layouts de aplicativos como WhatsApp, Zoom e Instagram. O recurso não só dribla a impossibilidade de interagir com outros comediantes pessoalmente, mas é uma forma de reforçar os laços com o espectador, que também se encontra em casa, privado de uma boa roda presencial de amigos.
Isso explica por que, mesmo com uma confortável frente de programas inéditos gravados, o Porta dos Fundos preferiu produzir conteúdo fresco: o mundo mudou de assunto, e tudo o que foi feito antes ficou datado. Os atores do grupo receberam em casa kits com câmeras e iluminação. Novas ideias são discutidas pela equipe em reuniões on-line. “É um exercício de criatividade refletir neste momento os anseios do público”, conta Antonio Tabet, um dos criadores do canal. Como resultado, as redes sociais do Porta cresceram 400% na quarentena. O mesmo trunfo de ter episódios inéditos no forno não acomodou o A Culpa É do Cabral, carro-chefe do canal pago Comedy Central, em que humoristas comentam sem censura temas variados num palco teatral. Comandada por Fabiano Cambota, a trupe fez um especial por videoconferência. “Não temos ideia de quando nos reuniremos novamente, então é bom saber que funciona”, diz ele.
Até o tradicional Saturday Night Live, da rede americana NBC, usou o programa de chamadas Zoom para que seus atores pudessem atuar uns com os outros. Celebridades como Tom Hanks e Brad Pitt abriram a porta de casa para reforçar o elenco. “Obrigado, que excelentes efeitos especiais de aplausos”, disse Hanks, ovacionado por uma inexistente plateia ao entrar na própria cozinha. Pitt, por sua vez, vestiu o figurino do imunologista americano Anthony Fauci, a quem cabe a ingrata tarefa de desdizer as abobrinhas de Donald Trump.
O esquete de forte tom político comprova outra tendência: esse humor renovado mescla escapismo com reflexão e informação. Nestor, personagem de Leandro Hassum no Vai Passar!, novidade do Multishow ambientada em um condomínio na quarentena, presta-se bem a esse fim. Em prisão domiciliar, ele tenta tirar a tornozeleira eletrônica para burlar a quarentena e usar a área de lazer do prédio. Na piscina, uma dondoca (Rodrigo Sant’Anna) não leva a sério as restrições. Ao telefone, discute com a doméstica: “Sou a favor do isolamento que separa pobre de rico”. Para Hassum, que superou tensões com a tecnologia (a esposa o ajuda nas gravações), o projeto espelha o noticiário: “Não faço piada sobre a doença, mas sim sobre as dificuldades do isolamento e o que ele revela das pessoas”. No Sinta-se em Casa, seu novo programa no Globoplay, Marcelo Adnet é ainda mais ácido (e engraçadíssimo). Os quadros gravados por ele com elementos encontrados em casa reproduzem até coletivas de Jair Bolsonaro. Adnet imagina um telefonema de Sergio Moro para o ex-presidente Lula pedindo dicas de como lidar com a recém-adquirida fama de comunista. “Não tenho traquejo para essa função”, diz o ex-ministro da Justiça. “O fato de o momento ser delicado não pode tornar o humor delicado. Somos o ópio, mas também somos o despertador”, teoriza Cambota, do A Culpa É do Cabral. Na “pandimia”, quem diria, o humor calibrou seus ponteiros com o público.
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Clique e AssinePublicado em VEJA de 13 de maio de 2020, edição nº 2686
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