Tráfico de pessoas (Salve Jorge), crianças desaparecidas (Explode Coração), emigrantes desesperados por melhorar de vida (América). A responsabilidade social sempre foi uma preocupação de Gloria Perez, a autora de A Força do Querer. Mas nunca, como acontece agora na novela das 9 da Globo, ela parece tão bem-sucedida. A trama de Ivana (Carol Duarte), que nesta terça-feira anunciou à família ser homem e cortou os cabelos em uma cena que misturou dor e alegria, é não apenas bem construída, dramaturgicamente falando, mas um sucesso de público. Raro caso em que se casam crítica e audiência.
Gloria foi cuidadosa, levou 100 capítulos para apresentar não apenas Ivana ao público, mas a si mesma: foi no centésimo episódio do folhetim que ela se deu conta de que não era uma menina, apesar de ter nascido no corpo de uma. Foi quando, depois de sentir que ultrapassou algum limite na sua primeira experiência sexual, com o namorado Claudio (Gabriel Stauffer), e entrar em colapso, ela conheceu T (Tarso Brant), um garoto que nasceu garota e hoje, garças aos hormônios que consome, tem pelos e barba no corpo.
Foi um recurso um tanto didático, é verdade, mas, em se tratando de uma novela, pode-se perdoar um pouco de didatismo, o gênero o abriga. T explicou que seu apelido vinha de Tereza, e daí se pôs a narrar toda a sua história, com a qual Ivana se identificou de imediato, especialmente com o trecho em que T disse odiar seus seios e agredi-los com raiva.
Essa cena o público já tinha visto, vários capítulos antes, em uma sequência comovente em que Ivana se encara no espelho, mas não se enxerga. O.k., espelho também é uma metáfora fácil, mas vem funcionando para falar com o amplo público conquistado por A Força do Querer – a novela é uma das maiores responsáveis pela plateia de 64,4 milhões de espectadores que têm, juntas, os cinco folhetins diários da Globo.
Recursos novelísticos à parte, Gloria Perez tem sido feliz como nunca nessa trama – o outro merchan social do folhetim, a jogadora compulsiva Silvana (Lilia Cabral) não desperta tanto interesse e empatia. Para além de bons índices no Ibope, sustentados também por Bibi Perigosa e por traições amorosas, Gloria conseguiu fazer com que espectadores de diferentes matizes sociais e ideológicas se identificassem com uma história nunca vista na teledramaturgia brasileira, e pouco conhecida de boa parte da população. Ao contar pouco a pouco o drama de Ivana, ela deu tempo que assimilassem, processassem, que a entendessem. E mostrou que está antenada: embora existam desde que o mundo é mundo, só agora os transgêneros começam a ser compreendidos como são – e não como uma anomalia, como já aconteceu.
Mas, sobretudo, Gloria acerta ao tocar no cerne da questão, em uma dor que, não importa o gênero e a sexualidade, é de todo mundo: a angústia de Ivana é, acima de tudo, existencial. Como ela dirá no capítulo desta quarta-feira ao pai, Eugênio (Dan Stulbach), que lutou contra a família para assumir a carreira de advogado: “Você passou por isso… de outra forma, mas passou, por essa dificuldade de ser aceito como é”. A dor de Ivana é de todos.