É com fervor quase religioso que Sarah Breedlove (Octavia Spencer) reúne mulheres ao seu redor, em uma feira de rua, para falar sobre um produto para cabelos crespos. A palavra milagre é repetida como um slogan poderoso que ela combina a outros apelos que parecem saídos de uma pregação: isso mudou minha vida e vai mudar a sua, garante, pouco antes de ouvir de uma das transeuntes um “amém”. A crença no produto vai além do resultado prático: tem uma missão capitalista nobre. Sarah promete empoderar mulheres negras, deixando-as mais bem-apessoadas, para que consigam melhores empregos e, assim, fiquem independentes. O cenário é o começo do século XX, e os efeitos da escravidão (abolida nos Estados Unidos em 1863) ainda são patentes. Na vida real, Sarah (1867-1919) batalhou com tenacidade para tirar seu discurso motivacional do âmbito dos sonhos. Ela foi de lavadeira a empreendedora da indústria dos cosméticos, tornando-se a primeira mulher milionária dos Estados Unidos. A trama de superação com algo de conto de fadas acaba de ganhar uma adaptação da Netflix: a minissérie em quatro capítulos A Vida e a História de Madam C.J. Walker.
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Antes de se casar com C.J. Walker (Blair Underwood), de quem tomaria emprestado o sobrenome que ficaria famoso no rótulo de seus produtos, Sarah viveu uma trajetória dramática. Filha de ex-escravos, ela fica órfã aos 7 anos. Aos 14, casa-se e engravida. Aos 20, já está viúva. Para sobreviver, trabalha colhendo algodão — atividade habitual aos escravos americanos, e que continuou por muito tempo nas mãos dos negros livres. Em Indianápolis, no Meio-Oeste do país, Sarah lava roupas para famílias brancas. Afetada por uma doença no couro cabeludo comum às negras da época por diversos fatores, entre eles a falta de produtos adequados, ela é socorrida por Addie Monroe (Carmen Ejogo), mulher de cabeleira cacheada que cria um cosmético para cabelo afro.
O produto inspirará Sarah a dar uma guinada, não sem antes provocar um conflito entre ela e Addie — que representa Annie Malone, outra empreendedora da vida real que ficaria milionária. A relação entre ambas é espinhosa: Addie, uma mestiça, não quer Sarah, negra de pele mais escura, associada à sua marca. A futura Madam C.J. Walker então elabora os próprios produtos em sua cozinha e os vende de porta em porta, até abrir o primeiro salão de beleza, depois a primeira fábrica e enfim se mudar para uma mansão em Nova York, transitando entre pensadores, políticos e famosos.
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Em essência, a série da Netflix é fiel à jornada da empresária. Mas uma bem-vinda liberdade criativa dá leveza aos episódios. Em vez de enveredar pelo tentador melodrama sobre uma vida de adversidades, o roteiro olha para as soluções encontradas por Madam C.J. Walker. A cada dificuldade, o humor surge como antídoto, aliado a intervenções oníricas imaginadas pela protagonista, uma mulher que não sabia ouvir “não” — e foram muitos, quase todos superados.
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Honrando o discurso da protagonista, que buscava elevar seus iguais, o time de roteiristas e diretoras é formado por mulheres negras — entre elas uma trineta de Sarah, a escritora A’Lelia Bundles, que assina a biografia que inspira a série. Caminho idêntico segue a trilha sonora, na qual standards do blues do século XX se mesclam ao hip-hop e rap atuais, com jovens talentos como a rapper Santigold e a cantora de soul Andreya Triana. Sarah, por si só, é uma personagem fabulosa. A embalagem de luxo da série faz jus ao estilo de vida que ela almejou — e alcançou.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679
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