É um fato bem conhecido que a derrota da Alemanha na I Guerra redesenhou o mundo e semeou o terreno para a futura ascensão de Hitler e um segundo conflito mundial. Mas a história talvez fosse diferente se uma grande ofensiva alemã, no fim de abril de 1918, tivesse dado certo. As tropas do general Erich von Ludendorff vinham obtendo avanços impressionantes contra as forças francesas, inglesas e americanas. A qualquer momento, os aliados esperavam um ataque decisivo. Mas passaram-se dias, semanas a fio, e nenhum movimento novo ocorria no front adversário. O silêncio tinha explicação: os alemães enfrentavam outra guerra bem mais terrível dentro dos próprios acampamentos. Tratava-se de um inimigo invisível, mas pior até que as bombas e os gases venenosos em voga. Ludendorff revelaria a razão da pane súbita: “Era uma tarefa penosa ter de ouvir toda manhã os comandantes recitarem o número de casos de gripe e as lamúrias sobre a fraqueza de seus soldados”.
A guerra passou, depois vieram sua sucessora e outros tantos conflitos. A chamada gripe espanhola, contudo, se manteria como um evento biológico sem igual em horror e extensão dos danos: é a maior e a mais letal pandemia que o mundo já enfrentou. Ceifou entre 50 milhões e 100 milhões de vidas — bem mais que os 17 milhões de vítimas da carnificina da I Guerra e o equivalente a 5% da população do mundo na época. Por décadas o tema pareceu não dizer respeito à vida contemporânea, com todas as suas conquistas tecnológicas e no campo da saúde. Coube ao coronavírus, naturalmente, demolir essa certeza e reacender o interesse pela maior de todas as pandemias. Chega ao Brasil no próximo dia 18 uma obra de 2004 que funciona como um excelente guia sobre essa doença que foi, digamos, a avó da Covid-19: A Grande Gripe, do americano John M. Barry.
A gripe de 1918-1920 é, sem dúvida, a analogia mais próxima da emergência sanitária de agora. Das páginas do livro emergem situações e dilemas estranhamente familiares. Enquanto debatiam a conveniência de quarentenas, autoridades amplificavam a tragédia com sua teimosia — na Filadélfia, a insistência na realização de uma parada de rua provocaria a contaminação e morte de milhares. Médicos e enfermeiras na linha de frente ganharam um papel heroico, mas terrível: devido à falta de proteção adequada, muitos sucumbiram à doença. O excesso de pacientes levou os sistemas de saúde ao colapso. Acumulavam-se corpos nas casas, ruas e hospitais. As máscaras tornaram-se um item inescapável. Felizmente, é improvável que a pandemia do coronavírus tenha uma escalada tão devastadora. “Ao contrário de 1918, temos agora a vantagem de contar com o conhecimento científico acumulado desde então para lidar com a ameaça viral em larga escala”, disse Barry a VEJA (confira a entrevista à esquerda).
Historiador e professor da Universidade Tulane, na Louisiana, Barry não se circunscreve à narrativa pura e simples do que foi a gripe espanhola. Seu livro é um tratado sobre geopolítica e história militar, sobre as pandemias e as lutas em busca de vacinas e remédios; é, ainda, um voo fascinante pela evolução de vírus e bactérias, e pela saga dos cientistas que os desvendaram — sobretudo nos Estados Unidos. O mundo era outro: embora a medicina tivesse evoluído nas cinco décadas pré-1918 mais que desde a Antiguidade, cientistas ainda engatinhavam em tudo, da identificação dos agentes causadores das doenças à forma de lidar com elas. Já se sabia que infecções eram provocadas por bactérias e vírus. Mas, mesmo algum tempo depois da gripe, ainda havia estudiosos que apontavam as emanações da terra e do clima — os “miasmas” — como seus causadores. Só quase uma década após a pandemia descobriu-se que a culpa era de um vírus — mais precisamente, do notório H1N1, variação do agente da gripe, o influenza.
O ponto inicial da gripe de 1918 é um mistério. Barry, no entanto, corrobora uma hipótese curiosa: o vírus mutante teria surgido num condado do Kansas, pedaço do interior americano em que as pessoas tinham contato com bichos como galinhas e porcos. Dali, espalhou-se pelos quartéis dos Estados Unidos recém-lançados na I Guerra — e, deles, expandiu-se como um enxame viral pela Europa, Índia, Nova Zelândia e por países sul-americanos como o Brasil. De espanhola, vale reiterar, a gripe não tinha nada: o apelido injusto se deveu ao fato de que, enquanto os países em guerra censuravam a pandemia, a Espanha se mantinha neutra e livre, e foi a primeira a noticiar o problema.
O livro recupera os efeitos do vírus em tétricos pormenores. Os doentes graves tinham hemorragias pelo nariz e pelos ouvidos e tossiam sangue a ponto de provocar lesões nos músculos torácicos. A extrema falta de oxigênio no sangue dava à pele um tom azulado. “Nas trincheiras da I Guerra, não se distinguiam os soldados brancos dos negros — todos ficavam azuis ao morrer”, informa Barry. Num desdobramento que deve servir de alerta nas discussões de hoje sobre quarentena, o vírus atacou em ondas com características diferentes. Na primeira, não era tão letal. A segunda onda, a partir de agosto de 1918, foi a mais forte e dramática, atingindo não só soldados como civis em todo o mundo. Em 1919, quando ia sendo esquecida, a gripe voltou forte e com nova característica: o vírus passou a causar danos cerebrais, trazendo derrames, delírios e sequelas mentais duradouras.
Nessa fase, o presidente americano Woodrow Wilson pegou a doença enquanto estava em Paris debatendo com outros líderes o tratado final da guerra. Wilson tinha convicção de que não se deveria infligir toda a conta do conflito à Alemanha. Mas, após os sintomas, entrou num estado de confusão mental e teria sido convencido a endurecer a versão final, instilando um ressentimento nos alemães que levaria à ascensão do nazismo. Já faz 102 anos que a gripe abalou o mundo — mas há muito que aprender com ela neste momento. Como ensina o grande Albert Camus, autor de um clássico sobre o impacto existencial de uma epidemia: “O que é verdadeiro sobre todos os males do mundo também é verdadeiro em relação à peste. Ajuda os homens a se superarem”.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685
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