Cristalizada no imaginário popular, a visão do viking como um guerreiro bruto e selvagem, navegador hábil e saqueador impiedoso foi construída ao longo de séculos e reproduzida em livros, filmes, séries, quadrinhos e videogames. Há até fantasias de Carnaval compostas do famoso capacete ornamentado com chifres, que por sinal tem origem nos figurinos de uma montagem de 1876 da ópera O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner, inspirada na mitologia nórdica. Ou seja, quase todo mundo já ouviu falar deles, de uma maneira ou de outra. Mas, assim como o folclórico chapéu com cornos, há muitos falsos conceitos envolvendo o ancestral povo do Norte. As tolices continuam a ser repetidas incessantemente.
Não por acaso, e talvez agora com uma interpretação mais adequada, uma nova onda viking tomou de assalto a indústria do entretenimento. Na Netflix, estreou recentemente Vikings: Valhalla, spin-off da consagrada série Viking. A história é inspirada em um personagem fascinante, o rei Ragnar Lothbrok, que teria vivido entre os séculos VIII e IX, na Suécia e Dinamarca. Não há evidências de que tenha existido, o que o transformou em uma figura ainda mais saborosa, tanto para a série quanto para a coleção de livros Crônicas Saxônicas, de Bernard Cornwell. Em abril, os cinemas exibirão O Homem do Norte. O diretor Robert Eggers também bebeu das andanças mitológicas de Lothbrok. No filme, o príncipe viking Amleth busca a vingança pelo assassinato de seu pai — a semelhança com o Hamlet, de Shakespeare, não é coincidência. No mundo dos games, a temática é responsável por sucessos estrondosos como Assassin’s Creed: Valhalla, um dos jogos mais vendidos da história, calcado no Grande Exército Pagão, formado por guerreiros dinamarqueses e noruegueses que em 865 invadiram o que é hoje o território da Inglaterra. Outro blockbuster estrondoso é Valheim, com 4 milhões de cópias negociadas no Steam, serviço de venda de jogos digitais. Lançado há apenas um ano, Valheim já está entre os preferidos dos usuários.
Por que, afinal, os vikings exercem tanto fascínio? De 793 a 1066, a Era Viking transformou o mundo nórdico. Sem se organizar em um estado, os povos da Escandinávia percorreram a Europa, partes da Ásia, da África e até da América do Norte — cinco séculos antes de Cristóvão Colombo desembarcar no Caribe. Pequenas nações independentes que acabariam se tornando Noruega, Suécia e Dinamarca, os povos do Norte compartilhavam culturas e estilos de vida parecidos, embora as línguas tivessem diferenças. Suas crenças tradicionais, no entanto, acabaram sendo, com o tempo, subordinadas ao cristianismo.
O imaginário dos vikings foi delineado a partir dos relatos dos agredidos. Foi só no século XII que os islandeses registraram um generoso pacote de textos poéticos e em prosa, as Eddas, que descrevem o panteão dos deuses nórdicos e germânicos. Daí tomaram forma Odin, Thor e Loki, que remetem aos personagens da Marvel, variações muito higienizadas de seus originais.
Em quase todas essas recriações, prevalece o perfil do viking bombado, cabeludo, branco e de olhos azuis. O estereótipo, que na primeira metade do século XX foi apropriado pelos nazistas para justificar o arianismo, foi derrubado por estudos arqueológicos. Eles mostraram que os nórdicos eram um povo diverso, cujas explorações e conquistas contribuíram para misturar sua assinatura genética. A ideia de que eram bárbaros pagãos e violentos, com seus dracares que se transformavam em esquifes em chamas para seus mortos, também está longe de ser uma verdade absoluta. Para além dos clichês, há alguma verdade nesses relatos, escreve o professor Neil Price no livro Vikings: a História Definitiva dos Povos do Norte (Criativa): “Mas os escandinavos também exportaram novas ideias, tecnologias, crenças e práticas para as terras que descobriram e os povos que encontraram”. A história sempre ensina. Por isso, é fundamental voltar a ela, sem parar.
Publicado em VEJA de 9 de março de 2022, edição nº 2779