Dos primórdios da evolução humana ao exibicionismo nas redes sociais, os quadris sempre foram mais do que apenas uma característica anatômica. São, acima de tudo, símbolos complexos de poder cultural que passaram por transformações ao longo da história. No livro Butts: a Backstory, lançado nos Estados Unidos e inédito no Brasil, a jornalista americana Heather Radke mescla memórias pessoais, ciência e crítica cultural para mergulhar de forma profunda e, ao mesmo tempo, divertida nas construções sociais que fazem com que derrières, especialmente femininos, entrem e saiam de moda.
Como elemento evolutivo, o quadril foi fundamental para que os seres humanos alcançassem posição de destaque entre os mamíferos. O pleno desenvolvimento dos músculos da região permite longos períodos de movimentação, o que fez com que os homens e mulheres se saíssem melhor na disputa por alimentos. Aos poucos, os flancos humanos evoluíram e se distanciaram de outros primatas. Mais tarde, passaram a ser vistos como forma de identificar as mulheres capazes de gerar bons descendentes — um mito derrubado pela medicina há muito tempo, mas que continua vivo no imaginário popular.
A história do bumbum não é exclusivamente anatômica. Simbologias complexas fazem com que os quadris despertem sentimentos antagônicos de desejo, repulsa, censura, objetificação e vergonha, a depender do olhar de quem vê e da sociedade na qual a pessoa está inserida. Figuras paleolíticas, como a Vênus de Willendorf, representavam as mulheres ideais com quadris largos. No século XVI, as práticas sexuais envolvendo essa parte do corpo foram oficialmente censuradas pela Igreja Católica no Concílio de Trento, com a justificativa de que se tratava de uma “animalização do ato divino criado para a reprodução humana”. No século XIX, bumbuns avantajados eram vistos de forma racista como “exóticos”. Sarah Baartman, a “Vênus de Hotentote”, foi retirada da África do Sul para que seu corpo fosse exibido e cutucado pelo público europeu em shows de aberrações, no auge da desumanização da população negra.
Os padrões de beleza também mudaram, sempre acompanhados pela moda. Tendências jogaram o bumbum para cima, como os espartilhos e as anquinhas, roupas íntimas que davam sustentação aos volumosos vestidos, ou para baixo, como as peças mais soltas de cintura baixa popularizadas nos anos 1920. Até meados do século XX, mostrar as chamadas partes pudendas, o bumbum incluso, era uma falta gravíssima para mulheres, que se cobriam com vestidos longos, forros, anáguas e rendas. Mais recentemente, o cenário mudou. O surgimento do biquíni, especialmente o fio dental, e a obsessão fitness colocaram novamente o quadril em destaque.
Hoje em dia existe o que a historiadora Mary Del Priore chama de bumbum promocional, usado como cartão de visita de personalidades — a socialite Kim Kardashian e a cantora Jennifer Lopez são retratos perfeitos dessa tendência. “Influencers e artistas de todo tipo utilizam e objetificam essa parte do corpo porque, desde os tempos imemoriais, o bumbum tem seu papel na história dos desejos de todo o mundo”, afirma Del Priore.
O Brasil ocupa posição de destaque na discussão. No livro, a autora cita o Brazilian Butt Lift, ou BBL, procedimento estético cuja origem remonta ao trabalho do cirurgião plástico Ivo Pitanguy na década de 60. O processo envolve a retirada de gordura de outras partes do corpo e a posterior injeção nos quadris. Mas há muito mais. Além da plástica, o bumbum é considerado “paixão nacional”, como escreveu o sociólogo Gilberto Freyre em artigo publicado em 1984 na revista Playboy, marca então licenciada pela Editora Abril. Ao menos desde os anos 1980 é o foco da publicidade e da indústria da música. Do axé do É o Tchan ao rebolado despudorado de Gretchen, do funk de Valesca Popozuda ao gingado de Anitta, passando pelas celebrações do Carnaval, as nádegas são celebradas como parte da identidade brasileira — é um fato e não há do que se envergonhar. Mas vale ressaltar, ainda bem, que temos muito mais do que o bumbum para mostrar.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833