Em uma das passagens mais famosas de O Livro do Desassossego, de 1982, Fernando Pessoa reflete sobre os fatores capazes de unir um povo em torno de uma identidade comum. O grande poeta português, sob o pseudônimo Bernardo Soares, coloca aí os limites territoriais em segundo plano e decreta: “A língua é minha pátria”. As raízes de sua sempre aguçada visão estão fincadas em uma linha do tempo que se inicia lá atrás, no século XVIII, com o surgimento dos Estados-nação na Europa. Dali em diante, os respectivos governos centrais foram elegendo, em meio a um abundante rol de dialetos, um que se tornaria a língua oficial de seus recém-criados países, em geral o mais falado pelas classes dominantes. A preservação do vernáculo como definidor da nacionalidade é uma ideia que jamais deixou de estar presente, mas, com o passar do tempo, um novo capítulo dessa história vem sendo escrito sob forte colorido ideológico, por meio de iniciativas que buscam blindar o idioma local de influências externas.
O alvo preferencial é a língua inglesa, onipresente na publicidade, nas redes sociais e, sobretudo, na boca dos jovens, que costumam recorrer a anglicismos que povoam seu caldo de cultura, como crush (paquera) e cringe (vergonhoso), universalmente disseminados. O fenômeno, comum em todo o Ocidente, levou o deputado italiano Fabio Rampelli, do partido da ultradireita nacionalista Irmãos da Itália, o da primeira-ministra Giorgia Meloni, a apresentar um projeto de lei que prevê multas de até 100 000 euros para empresas públicas e privadas que empreguem palavras estrangeiras para promover produtos e serviços. Apesar de se aplicar a qualquer língua, o político destaca a “anglomania”, que teria um “efeito deletério à sociedade”. Chega de palavras em inglês, prega o deputado. Empunhando bandeira de matiz semelhante, o presidente russo Vladimir Putin acaba de baixar um decreto proibindo funcionários do governo — inclusive soldados — de utilizar termos de “civilizações degeneradas”, referindo-se às potências com as quais duela na guerra contra a Ucrânia. O inglês, tão utilizado por seu Exército, passou a ser vetado.
Esse tipo de iniciativa é rechaçada pela imensa maioria dos linguistas por conter em sua essência, antes de tudo, um viés autoritário. “Ao querer implantar medidas de tal natureza, esses líderes fazem uma tentativa de excluir a rica diversidade que o idioma espelha”, avalia o cientista político italiano Fabio Gentile, radicado no Brasil e professor da Universidade Federal do Ceará. Outro ponto vital ao debate é que uma canetada oficial dificilmente terá efeito vasto e duradouro, uma vez que as transformações no modo de se exprimir ocorrem como decorrência de profundas mudanças no comportamento e nos anseios de um povo. O gradativo banimento de termos politicamente incorretos são um exemplo contundente disso — ele parte de uma sacudida na mentalidade coletiva, uma guinada no pensamento em que verbos como o antissemita “judiar” e o racista “denegrir” não têm mais espaço.
A supremacia do inglês no mundo teve início no século XIX, a partir da expansão do império britânico. O intenso fluxo comercial entre a metrópole e suas colônias fez com que as transações financeiras servissem para o desembarque de novas palavras, que foram sendo incorporadas ao vocabulário local. Vêm dessa época verbetes tão comuns no português como sanduíche e piquenique, que aportaram em Portugal, depois em solo brasileiro — onde, aliás, os termos afrancesados chegaram antes, no princípio do século XX, quando o Brasil sonhava ser a França. A ascensão dos Estados Unidos após a II Guerra e a globalização do fim do milênio deram fermento ao fenômeno, impulsionado pelo soft power (ou, traduzindo mais esse anglicismo, poder brando) — a capacidade de países influenciarem outros por meio da cultura. Desde os anos 1950, Hollywood vem popularizando o inglês planeta afora, algo potencializado pela era dos videogames (quem fala jogos eletrônicos?). “As mudanças não estão degradando a língua, mas são incorporadas e acomodadas ao jeito nativo de falar”, afirma a linguista Adriana Leitão Martins, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Se no Brasil até os dicionários incluem anglicismos — deletar é um dos exemplos mais recentes —, em países como Portugal a sociedade tende a expeli-los, como ao chamar o aparelho que move o cursor na tela do computador de rato, no lugar do amplamente usado mouse. Imbuída de um nacionalismo de DNA distinto do italiano ou do russo, a prestigiada Academia Francesa, guardiã do bom francês, mantém uma espécie de índex com jargões do universo corporativo que devem ser evitados, como feedback (retorno) e budget (orçamento). A instituição também está recorrendo à Justiça para que dois ícones nacionais, a Torre Eiffel e a Catedral de Notre-Dame, não se limitem às placas informativas em inglês — elas precisam ser ampliadas para outros idiomas, defende. “Historicamente, medidas com a intenção de moldar o idioma, de cima para baixo, não têm colhido qualquer efeito prático”, lembra o linguista Dante Lucchesi, da Universidade Federal Fluminense. Como um organismo vivo, é nas ruas, e não nos gabinetes, que a língua toma seus rumos. All right?
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841