Era uma vez um ambiente hostil em que seres humanos e lobos se comportavam feito inimigos mortais, ambos vivendo em grupos e competindo por alimento e território. Contudo, em algum momento entre 20 000 e 40 000 anos atrás, durante a última Era Glacial, essa relação se transformou e se tornou mais pacífica. Para o homem, ter uma alcateia por perto garantia proteção contra as feras. Para o lobo, ter uma família hominídea nas redondezas era certeza de sobras de comida. A amizade deu tão certo que alguns animais aceitaram ser domesticados e, com o passar do tempo, deram origem a uma raça completamente diferente, os cães.
Certas características de seus ancestrais selvagens, no entanto, permanecem em nossos companheiros de quatro patas. Segundo uma nova e robusta pesquisa, em cima de dados de 21 000 cachorros, eles gostam mesmo é de estar com outros… cachorros. Nada melhor para o bem-estar animal que o convívio com a mesma espécie. Que fique claro: cães apreciam bastante a companhia humana. Mas a ciência colhe provas de que a saúde deles tem a ganhar quando existe uma matilha no pedaço. “O suporte social, que inclui o convívio com outros pets, é cinco vezes mais determinante para a saúde do bicho do que qualquer outro aspecto”, diz Noah Snyder-Mackler, professor da Universidade Estadual do Arizona, nos EUA, e coautor da pesquisa.
Embora seja a primeira vez que tal preferência e seu impacto tenham sido evidenciados por um grande estudo, os efeitos e os sintomas da solidão canina podem ser percebidos facilmente pelos donos. Os animais tendem a sofrer quando os tutores saem para trabalhar, ficando apáticos e perdendo até a fome. É um fenômeno conhecido como ansiedade de separação. O melhor remédio para esse quadro é a convivência com outros cachorros. “Ela reduz a sensação de abandono e propicia movimentação e estímulos sensoriais, antídotos contra o estresse”, diz Alexandre Rossi, zootecnista especialista em comportamento animal.
Há outras maneiras de contornar a chateação, que parece ter se tornado mais frequente depois de tanta gente retornar do home office para o escritório no pós-pandemia. Nada de outro mundo. É levar o cachorro para passear e brincar com ele. Permitir que o animal circule pelos ambientes da casa e fique próximo da família certamente faz a diferença. E, quando é preciso deixá-lo por um tempo, a saída é evitar o tédio. Deixar brinquedos, espalhar petiscos pelo ambiente… Ou, e essa é a prescrição científica, oferecer, desde cedo, permanente companhia canina.
A análise trouxe outros achados curiosos. A presença de crianças em casa, pasmem, foi associada a piores índices nos cuidados com os animais, ao passo que cães de pessoas mais velhas exibiram perfis mais sadios. Lares com renda alta também proveram mais assistência veterinária. No fundo, tudo tem a ver com a alocação de recursos. “Ainda que os cachorros sejam considerados parte da família, se há uma criança em casa, provavelmente você vai se preocupar mais em garantir que ela não se meta em problemas do que olhar para o bicho”, diz Brianah McCoy, também autora do estudo. Nessa lógica, aposentados terão mais tempo para dar passeios e indivíduos com maior poder aquisitivo poderão desembolsar mais com consultas. Uma unanimidade: os cães detestam solidão. Vai adotar um filhote? Que tal então levar dois?
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848