Ao longo dos tempos, a ideia de que a mulher só alcançaria a plenitude se desempenhasse a função de mãe foi sendo consolidada junto a uma romantização do papel. Dedicação, paciência, sacrifícios — tudo isso está compreendido no rol esperado da ala feminina que se aventura na maternidade. Por séculos a fio, tratar de outros sentimentos que afloram nessa jornada — raiva, tristeza, culpa, cansaço — era um daqueles tabus envoltos em espessa nuvem de silêncio. Aí veio o ano de 1980, e a discussão tomou os holofotes com novos contornos, embalada pelo revolucionário O Mito do Amor Materno, da filósofa francesa Elisabeth Badinter, que cutuca as angústias e ambiguidades contidas na criação dos filhos. Na obra, a autora sustenta que o amor materno é uma construção social, e não uma condição natural, premissa que, por si só, fez tremular pilares bem estabelecidos. “A idealização da maternidade condena muitas mulheres à frustração, pois, ao não corresponderem a esse horizonte inatingível, elas sentem-se culpadas”, resumiu Badinter.
Vagarosamente, os mitos dos quais a filósofa francesa fala sem travas vêm sendo dissolvidos, tendo como moldura os avanços femininos das últimas décadas e a onipresença das redes sociais, onde o papo-mãe circula sem filtros por diversas rodas. Nesse contexto de maior abertura, 2 000 brasileiras responderam recentemente a um vasto questionário em que foram indagadas sobre a prática da maternidade e como ela impactava suas vidas, pesquisa conduzida pelas plataformas especializadas Kiddle Pass e B2Mamy. A conclusão é que nove de cada dez representantes da amostra revelavam, em graus distintos, alterações físicas e mentais às quais se deu a alcunha, para efeito didático, de “burnout materno”.
Com uma ressalva, fundamental, de modo a evitar confusão: o termo burnout é empregado no mundo do trabalho para descrever um estresse crônico que pode levar à exaustão e ao esgotamento, um mal do século XXI, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No terreno das mães, é comum que se manifeste em forma de insônia, falta de apetite, impaciência, sensação de distanciamento da prole e ansiedade. A maioria relata esses sintomas em intensidade moderada (44,2%) e leve (37%), mas um número considerável (9,4%) se situa no preocupante patamar “extremo” (veja no quadro). “Pode chegar um ponto em que a mãe se sente incapaz de atender às necessidades da criança”, diz Mari Pereira, diretora responsável pelo estudo.
Um dos motores para a exaustão feminina é a sobrecarga, que tem relação direta com a dinâmica predominante nas famílias, onde ainda são as mulheres as que mais acumulam tarefas. Apesar das notáveis conquistas nesse campo, 20% delas não contam com nenhuma rede de apoio no tão gratificante quanto árduo processo de educação dos filhos, de acordo com a pesquisa. A professora de biologia Anna Letícia Cirino, 27, compõe o time das que se veem sozinhas em meio ao intenso dia a dia da criançada. Separada, Anna lida com uma atribulada rotina de escola, médicos e atividades extracurriculares de Marvin, 6 anos, diagnosticado com autismo, condição que requer mais atenção. “Mesmo quando estávamos juntos, o pai só dava uma ajuda mínima”, desabafa ela, que sofre de crises de ansiedade e chegou a não ter forças para se levantar da cama.
Quando à agenda materna se soma a carreira, muitas caminham sobre uma linha finíssima, em que tentam se equilibrar à custa de elevadas doses de esforço. “A mulher se inspira naquele modelo da super-heroína que dá conta dos filhos e do trabalho, em que se vê pressionada a provar que é a melhor profissional, para não perder o emprego”, observa a cientista social Marcela Castro, da Universidade Federal do Piauí. Uma saída para aliviar a barra feminina é contar com benefícios por parte das empresas — as que atuam em firmas com licença-maternidade estendida e a possibilidade de home office apresentam 34% menos sinais de esgotamento, como aponta a pesquisa. Manter maternidade e trabalho requer um aprendizado penoso para algumas. A advogada Emanuelle Louzada, 39, retomou o batente cinco meses após o nascimento de Raul, hoje com 3 anos. “Estava insatisfeita de ter que ficar longe dele e pedi demissão”, lembra ela, que sentia cansaço e até certa tristeza nos primeiros tempos de maternidade. “Vi que precisava de ajuda e passei a cuidar da saúde mental”, conta a advogada, que seguiu uma trilha muito recomendada.
A extrema fadiga materna é mais incidente entre as mães de bebês, uma fase em que elas precisam enfrentar uma rotina de noites maldormidas e uma tarefa após a outra — exercício braçal que, para muitas, não traz aquela sensação de satisfação, mas justo o contrário. Mãe de primeira viagem, a estudante de nutrição Juliana Silveira, 24, ficou exaurida nos primeiros meses de vida de Sophia, de 5 anos. “Ela não dormia. Tive falta de apetite, irritabilidade e chorava muito”, lembra a carioca, que perdeu o elo com o mundo exterior e se abateu. “Só quem é mãe entende a importância de se reconhecer para além disso”, enfatiza. Toda essa complexidade embutida na virada de página para a maternidade nem sempre é vista com suas necessárias nuances. “Muitas mulheres se calam por medo de julgamento, mas não deveriam”, diz a psicóloga Nathalia Bessa, da UFRJ. Se falassem mais sobre o que sentem para valer, saberiam que não estão sozinhas.
Publicado em VEJA de 27 de setembro de 2024, edição nº 2912