Até pelo menos a metade do século passado, lidar com dinheiro era coisa de homem — e ainda é, em muitos pontos do planeta. Mas, por motivos diversos, sendo os principais o fato de elas viverem mais tempo e seu considerável avanço na seara do empreendedorismo, as mulheres estão se apoderando das fortunas que movem o mundo. Na lista de bilionários da revista Forbes, elas ocupam 369 posições, número que ainda é uma gota d’água diante dos 2 412 homens do ranking, mas que representa um salto de 114% na última década. E devem ser as maiores beneficiárias do que está sendo chamado de “a grande transferência de riqueza” — trilhões de dólares acumulados pelos baby boomers, a geração de americanos nascidos no pós-guerra, que até 2030 devem ser repassados para as esposas à medida que os maridos milionários morrem ou ficam incapacitados.
Um efeito colateral desse fenômeno pode repercutir pelo mundo todo e, em última instância, contribuir até para a redução da desigualdade social: prevê-se, com a expansão do universo das muito ricas, um aumento correspondente no volume de doações para a filantropia, visto que elas são notoriamente mais generosas do que eles.
Ex-mulher de Jeff Bezos e seu braço direito na fundação do império Amazon, MacKenzie Scott saiu do divórcio com 35,6 bilhões de dólares e em apenas três anos já doou 14 bilhões deles para 1 621 instituições de caridade. Outra divorciada no clube dos bilionários da tecnologia, Melinda French Gates, ex do dono da Microsoft, reservou 5 bilhões de dólares “para pessoas e organizações que trabalham em prol de mulheres e famílias em todo o mundo”. Outras megarricas de conhecida mão aberta são a cantora Taylor Swift, novata no time; Melanie Perkins, criadora da plataforma Canva; e Priscilla Chan, mulher de Mark Zuckerberg, da Meta e do Facebook. “Mulheres são ensinadas a ser altruístas, a colocar o outro em primeiro lugar”, explica a socióloga Clara Maria Araújo. A motivação para a filantropia também tem raízes na neurociência: uma pesquisa conjunta entre cientistas da Alemanha, Suíça e Holanda mostrou que a liberação de dopamina, hormônio da felicidade, aumenta no cérebro de mulheres, mais do que no de homens, quando dividem o dinheiro. “Elas sentem necessidade de partilhar para não serem interpretadas como egoístas, algo incentivado nas meninas desde a infância”, afirma Marta Souza, da Sociedade Brasileira de Psicologia.
Os cálculos sobre “a grande transferência de riqueza” variam, mas, em geral, antecipa-se que quase 85 trilhões de dólares vão ser repassados pelos baby boomers entre agora e 2045, sendo 16 trilhões nos próximos dez anos. Boa parte irá para viúvas, sem falar em filhas e netas, e na ordem geral das grandes fortunas poucas novidades devem acontecer, já que o grosso das heranças se concentra no célebre 1% que compõe os super-ricos. No entanto, a perspectiva de que um grande volume de dólares passe para o controle de mãos femininas pode ter impacto significativo na filantropia. Além de se sentirem bem praticando a generosidade, as mulheres estão mais atentas do que os homens às mazelas e desigualdades sociais, por serem mais expostas a elas em ações comunitárias — um campo dominado pelo sexo feminino.
Levantamento recente da Lilly Family School of Philanthropy, centro de estudos sobre filantropia da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, revelou que, entre os ricaços, elas doam com mais frequência e em quantias maiores do que eles devido à crença de que “podem fazer diferença na solução de problemas que as afetam ou a pessoas próximas”, como a luta por justiça racial e pelos direitos da comunidade LGBTQIA+. Mulheres em geral, e não só bilionárias, são 20% mais dispostas do que homens a distribuir alimentos, roupas e itens de primeira necessidade. “Para os homens, dinheiro representa poder, realização e prestígio. Já as mulheres tendem a pensar em dinheiro em termos de segurança, liberdade e uma forma de atingir seus objetivos”, diz Debra Mesch, diretora do Instituto de Filantropia Feminina. É esperar para ver se, na conta bancária delas, mais recursos irão estreitar o fosso entre ricos — no caso, riquíssimos — e pobres.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901