Sempre soube que eu não era como as outras pessoas. Mas, no íntimo, tinha medo de descobrir o que realmente havia de diferente em mim. Esse receio, associado à falta de informação, me levou a postergar um diagnóstico de autismo, que tive apenas há dois anos, aos 25. Já na infância, meu cérebro dava sinais de que não funcionava de forma convencional. Eu era perseguido por colegas de classe, tinha pouquíssimos amigos e uma enorme dificuldade de aprender coisas novas. Não me encaixava bem em nenhum ambiente. Era um estranho no ninho. Com o tempo, isso foi minando minha autoestima, e assim segui até a adolescência, quando comecei a apresentar sintomas tímidos de depressão. Vim de família humilde, sem acesso a educação de qualidade e a bons médicos. Por isso, nunca tive acompanhamento psicológico e as pessoas à minha volta acreditavam que eu apenas tinha reações dramáticas e exageradas diante dos incômodos naturais da vida.
Na fase adulta, passei a pesquisar sobre condições que afetam o funcionamento cerebral. Encontrei um livro sobre neurodivergência e fiquei impressionado com as possíveis manifestações do autismo que reconhecia em mim. Parecia que estavam me descrevendo. Foi o pontapé para começar a investigar o meu quadro. Até então, era totalmente ignorante no assunto. Aos 24 anos, decidi procurar ajuda profissional e me submeti a uma série exaustiva de exames e testes, que levaram quase um ano para serem concluídos. Finalmente, recebi o diagnóstico do transtorno do espectro autista (TEA). Isso representou a virada de chave na minha vida, a ficha que caiu. A partir dali, diversos acontecimentos mal resolvidos do passado fizeram sentido.
Sempre fui uma pessoa cheia de manias, irritadiça, arrumava brigas sem motivo. Só depois do diagnóstico consegui me perdoar por tais atitudes. Acabou sendo um estágio de profundo autoconhecimento. Vivi mais de duas décadas sem entender o que acontecia comigo. A depressão estava se aprofundando e poderia até ter atentado contra minha própria vida se não tivesse descoberto ser autista. No fim das contas, me trouxe grande alívio. Como boa parte das pessoas autistas, possuo transtorno do processamento sensorial, que afeta o sistema nervoso e causa alterações nos sentidos. Tenho sensibilidade térmica disfuncional — se faz um pouco de calor, para mim é como se estivesse 40 graus. Da mesma forma, começo a tremer quando o tempo esfria. Meu corpo não consegue se ajustar à temperatura externa. Não é algo previsível, então fico constantemente agoniado, pensando que posso, de repente, sofrer algum mal estar.
Hoje, está claro que o autismo é parte de quem sou. Não é uma característica banal, que muda ao longo do tempo. É uma condição que impacta em como percebo o mundo e como reajo a estímulos ao meu redor. Tudo o que faço é, de certa forma, influenciado por isso. Aos poucos, fui criando estratégias para viver de maneira funcional, me adaptando ao que me é hostil. Depois de saberem de meu autismo, as pessoas também passaram a ser mais compreensivas e pacientes. Meu marido, o Leandro Karnal (com quem está casado há quatro anos), é cauteloso e respeita meu espaço. Eu não gosto, por exemplo, que façam carinho nos meus braços, sinto uma raiva indescritível. Combinamos então que a iniciativa desse tipo de afeto deve partir de mim. Atualmente, trabalho como cantor e compositor, uma realização diária. Karnal diz que fica impressionado com a criatividade que vem em mim. Passei anos enfrentando monstros internos sem entender o motivo. Ainda tenho muito chão pela frente, mas não resta dúvida: hoje vivo mais feliz.
Vitor Fadul em depoimento dado a Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 5 de abril de 2023, edição nº 2835