“O rei atirou seu anel ao mar / e disse às sereias: ide-o lá buscar, que se o não trouxerdes / virareis espuma / das ondas do mar!” A sereia — como no poema de Manuel Bandeira, depois musicado por Dorival Caymmi, devoto de Iansã —, foi sempre personagem de fascinação. A mítica figura, meio peixe, meio mulher, foi usada pela mitologia grega para iluminar os perigos do mar — e, a partir dessa ideia inicial, os riscos da vida, daí tê-la cantada em verso e prosa.
A cultura pop, é natural, não demorou para adotá-la. Um dos grandes sucessos de 2023, o filme A Pequena Sereia, lançado em maio, pôs a atriz negra Halle Bailey no papel da protagonista Ariel — a princesa ruiva do desenho original. A evidente crítica ao racismo e a louvação da diversidade serviram de atalho para outro passo: o sucesso de modelos inspirados nos seres mágicos no mundo da moda. Virou tendência, porque é sensual e tem lá seu charme.
O fio foi puxado pela própria Halle nas premières do longa. Depois despontou no traje feito de conchas do mar de Naomi Campbell, na cerimônia do Oscar. A maré avançou, e pululam os modelitos ampulheta, em tecidos fluidos, com estampas de escamas, efeitos holográficos e acessórios com temas marinhos. E então Shakira explodiu em seu mais recente videoclipe, nas redes sociais, quase como veio ao mundo, mas em cauda longa.
A produção — Copa Vacía, eis o nome — é um suposto recado ao ex-marido da colombiana, o ex-jogador de futebol Piqué. A diva aparece traída e abandonada, mas capaz de renascer forte e poderosa como uma linda sereia. Na mosca: a imagem tem se espalhado pelo planeta, em vídeos e revistas, como símbolo de poder (atenção homens!) — mas também de sedução. É alimento para as passarelas, sem dúvida. E, como uma onda no mar, vai e vem. Na Odisseia, Homero as pôs com cantos belos e insidiosos. Daryl Hannah, linda, fez par com o tímido Tom Hanks, em Splash — Uma Sereia em Minha Vida, de 1984. Cher foi uma delas em Minha Mãe É uma Sereia, na década de 1990. Na novela A Força do Querer, da Globo, Isis Valverde protagonizou uma dessas sereias de aquários, mas aí a conversa é outra, por atrair o riso das crianças mas também o desnecessário interesse de adultos, de rostos colados aos vidros embaçados.
Tudo somado, o recado é nítido: o “sereísmo”, eis o nome do movimento, é relevante e convém não ignorá-lo, mesmo que pareça tolice. Há quem o assuma como filosofia de vida, mas há também quem faça dele um negócio. É o caso da estilista brasileira Morganna Bochi, da marca Sereia Guardiã, especializada em caudas personalizadas e encomendadas por gente de todo o mundo. Não há estatística confiável que possa medir o aspecto financeiro do jogo, mas ele é visível e — até que desponte outra coisa — soa onipresente. “As sereias levam uma mensagem de preservação e têm toda uma estética muito particular”, diz Morganna, ao arriscar uma explicação para o fenômeno. Nenhuma sereia vai mudar o mundo, tampouco salvá-lo, mas a filha de Poseidon transbordou. O canto da sereia é magnético.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866