Desde os primeiros passos que dei no mundo, a dança sempre me moveu. Eu já mostrava, ainda muito pequeno, o gosto de me expressar por meio dos movimentos ritmados. Pedi, então, à minha mãe para me matricular em uma academia. Queria praticar. De início, ela resistiu. Um dos obstáculos era a nossa condição financeira. O outro, bem mais duro, tinha a ver com o medo que sentia do preconceito que eu enfrentaria por escolher as sapatilhas no lugar das chuteiras. Minha mãe é comerciante autônoma, vende bebidas em um puxadinho aqui de casa e carregava na memória o caso de um primo que sofreu discriminação por optar pela carreira artística. Ser bailarino não é uma profissão bem-vista na comunidade em que vivemos, na periferia do Recife. Eu me acostumei a ouvir comentários maldosos quando imito as coreografias que vejo na TV. Deixei de me importar.
Mesmo com tantos obstáculos, como não tirava a ideia da minha cabeça e não parava de insistir, minha mãe entendeu que não era sonho passageiro e foi atrás de uma bolsa de estudos para mim, para que eu pudesse aprender a dançar. Deu certo. Tinha 5 anos e pegava um ônibus lotado que fazia uma longa viagem até a área nobre da cidade onde ficava a academia. Nunca pensei em desistir. E, seguindo com seriedade essa rotina, recebi elogios das professoras e ganhei uma bolsa integral, oportunidade que transformou minha vida. A partir daí, entendi que é no palco, na ponta dos pés, que eu me sinto verdadeiramente livre. Conciliei o colégio com um dia a dia puxado de ensaios durante nove anos e ficou bem claro para mim: ser bailarino profissional era minha vocação.
Apesar do início promissor, fazer parte de uma das maiores companhias de dança do mundo parecia distante. E aí dei uma sorte inacreditável: a seletiva deste ano da filial brasileira da prestigiada Escola do Teatro Bolshoi, de Moscou, aconteceu na academia onde eu danço. Eu me inscrevi na hora, mas despretensiosamente. Aos 13 anos, apesar de já ter passado por festivais, nunca tinha participado de uma audição como essa. Fui pela experiência de estar ali e ser observado por aquelas pessoas. Quando vi que tinha sido aprovado na primeira etapa, não acreditei. Restava, porém, um problema: a avaliação final seria em Santa Catarina, sede do Bolshoi no Brasil, e minha família não tinha recursos para a viagem. E, de novo, minha mãe moveu céus e terras. Em pouco tempo, contando minha história, ela vendeu de tudo (de rifas a feijoada e salgadinho) até juntarmos o dinheiro.
Em setembro, chegamos, enfim, a Joinville. Fiquei maravilhado com a estrutura linda e gigante do Bolshoi. Foi uma semana intensa por lá, e vi tudo o que o Bolshoi poderia oferecer: aulas de dança, canto, teatro, piano além dos novos amigos. Logo tive aquela sensação boa de estar em casa. Os avaliadores foram muito gentis. E, para meu espanto, o peso que tanto carregava por ser um menino de sapatilhas foi indo embora e cedendo espaço à alegria de dar vazão à minha maior paixão. Olhar fundo nos olhos da minha mãe, orgulhosa de ver que sua batalha tinha me levado longe, me encheu de emoção. Apenas essa experiência já teria sido importante. Mas aí veio a semana do meu aniversário e, de volta ao Recife, recebi o melhor de todos os presentes. Minha mãe atendeu o telefone e escutou do outro lado da linha: “Seu filho foi selecionado para o curso de formação de bailarino do Bolshoi”. De repente, aos 14 anos, estou realizado, mas também ciente da profunda mudança que me aguarda — terei de deixar minha vida, amigos e familiares para trás. Como sou menor de idade, minha mãe irá comigo. E adivinhem? Ela iniciou outra campanha para arrecadar fundos. Vai valer a pena, Tenho em mim aquela certeza de que os caminhos irão se abrir e que o futuro ainda me reserva muitos e muitos saltos.
Guilherme Rodrigues em depoimento dado a Camille Mello
Publicado em VEJA de 26 de outubro de 2022, edição nº 2812