Ao longo da minha carreira, nunca vi sentido em ficar falando sobre a minha intimidade. Mas aí veio a pandemia, aceitei participar de uma live para uma turma de universitários e aquilo mexeu comigo. Tive ali a dimensão de quanto poderia contar às pessoas e, sim, elas se interessavam em me ouvir. Comentei o fato com minha amiga Fernanda Torres, que logo me deu o incentivo: “Não acha que está na hora de deixar um registro seu?”. Foi o empurrão decisivo para escrever a autobiografia Eu Sou uma Série de 11 Capítulos. E, nesse grande bufê que é a vida, achei que não poderia pôr no papel só os momentos doces e felizes — os amargos também deveriam estar lá. São passagens que doeram, machucaram, mas, a essa altura, perdi o receio de torná-las públicas. Talvez possam ser importantes a alguém. Uma dessas questões espinhosas é justamente minha luta contra o vício. Venho de uma família com casos de alcoolismo e demorei a perceber que era um deles. Precisei chegar ao fundo do poço.
Comecei a beber com frequência a partir dos 30 anos. O álcool me deixava solto, desinibido, me dava uma sensação boa. Como sempre fui fraco para bebida, com dois copos já ficava meio doido e, não raro, degringolava. Sou do tipo festeiro, que adora se ver cercado de gente. O primeiro alerta soou quando amigos passaram a me dizer que eu tinha extrapolado no dia anterior. Pior: não me lembrava de nada. O hábito foi ganhando escala e tomando espaço no meu cotidiano. Alcançou um ponto em que bebia todos os dias. Há uns cinco anos fui internado em uma clínica, mas não adiantou. Embora, nesse período, continuasse a fazer teatro, me sentia inválido e perdia coisas de que gostava. Já não conseguia correr ou nadar, atividades que me davam prazer, e ao olhar no espelho não me reconhecia de tão inchado. A virada de chave ocorreu depois de destruir dois carros. Podia ter morrido, mas também matado pessoas. O basta veio com a ajuda essencial de meu atual terapeuta. Hoje posso dizer que estou bem.
Não é do meu feitio fazer drama sobre minha trajetória e estou longe de ser uma cara para baixo. Trato desse assunto no meu livro com naturalidade, em meio a relatos da infância, da carreira e de episódios, fora os da bebida, em que precisei de apoio. Em uma determinada época, só conseguia fazer comerciais ou gravar na TV à base de ansiolíticos. Chegava ao estúdio e queria imediatamente ir embora. Fui diagnosticado com depressão, que, no meu caso, se camuflava no meio de sentimentos como ansiedade e angústia. Olhando em retrospecto, acho que um dos gatilhos foi a perda de inúmeros amigos nos anos 1990 para o HIV. De uma hora para outra, boa parte da minha turma desapareceu. Nunca fiquei escondido no armário em relação à minha sexualidade, mas ao mesmo tempo nunca vi a necessidade de agitar bandeiras.
Escrever sobre mim me fez refletir para valer. Sempre fui uma pessoa do bem, mas não um anjinho. Na adolescência, usei maconha, depois experimentei outras drogas e, claro, vivi minhas maluquices. Lembro de uma vez em que eu e o Ney Matogrosso entramos numa viagem psicodélica em Búzios. Mas nada se comparou ao abuso do álcool. Há cerca de quatro anos minha vida passou por uma revolução. Só bebo esporadicamente, em comemorações, e aprendi, à base de muita terapia, a hora de parar. Esse bom período coincide com a decisão que tomei junto com Adriano (seu companheiro há 25 anos) de adotar nossos filhos — Olívia, de 9 anos, e Dante, de 11. Eles foram adotados em um abrigo do Amazonas, para onde nos mudamos durante um mês, em 2020. Converso abertamente sobre tudo com as crianças — e não será diferente em relação à luta que travei contra o alcoolismo. A bebida faz parte da minha história. Hoje posso dizer que me livrei dela.
Luiz Fernando Guimarães em depoimento dado a Sofia Cerqueira
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817