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‘Há um interesse maior para a literatura negra’, diz fundador da editora Malê

Sucesso reflete uma demanda reprimida, mas também ressalta a necessidade de mais políticas de diversidade

Por Luiz Paulo Souza Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 5 ago 2024, 13h24
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  • Por muito tempo, escritores negros foram ignorados pelo mercado editorial brasileiro. Mas deram um jeito: custearam as próprias produções, organizaram feiras, se movimentaram em grupo para se fazerem lidos. A editora Malê, fundada em 2015, nasceu com o propósito de modificar esse meio e trazer diversidade para as publicações brasileiras. 

    O sucesso foi quase imediato: em dois anos, eles estavam nas maiores feiras literárias do país, com autores de destaque – um sinal claro de que, até aquele momento, o mercado ignorou uma demanda grande e genuína. 

    Em entrevista a VEJA, Vagner Amaro, fundador da Malê, fala sobre esse movimento, as mudanças recentes do mercado e o que ainda precisa ser feito para que a bem-vinda diversidade ganhe espaço – de verdade – no meio editorial brasileiro. 

    De onde nasceu a ideia de fundar a Malê? A Malê foi criada em 2015 com o objetivo de ampliar a presença negra no mercado literário brasileiro, com foco em autores negros afrodescendentes e africanos. Nossa previsão é finalizar 2024 com 180 títulos em nosso catálogo e comemorar os 10 anos em 2025 com mais de 200 títulos. 

    Como você se organizou para entrar nesse meio? Eu estudei o mercado, e estruturei a editora para cobrir as lacunas que não estavam levando a maior circulação dos títulos de autoria negra. Em 2015 eu planejei que com a Editora Malê, em 10 anos, o mercado literário teria se modificado em relação a presença dos escritores negros. Em 2013, quando começo a pensar na editora, o contexto era, com raras exceções, de desinteresse do mercado, do jornalismo literário, dos curadores de eventos e dos produtores culturais literários pela literatura de autoria negra. 

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    Como ela foi recebida? A Malê foi muito bem recebida pelos escritores negros. Nossa primeira publicação foi um livro de contos da escritora Conceição Evaristo. Já em 2017, tínhamos um livro da Conceição entre os mais vendidos da FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Dei entrevistas em grandes veículos culturais. Então, acredito que o mercado entendeu que entramos na cena literária com profissionalismo e desejo de estar par a par com o que vinha sendo produzido e com a forma com que se produzem livros no Brasil. O nosso compromisso social sempre nos moveu a sonhar alto.

    O mercado literário parece estar mais receptivo a reconhecer personagens negros históricos. Isso está mesmo acontecendo? O mercado literário respondeu a percepção de que há um consumidor interessado em ler autores negros e temáticas ligadas as populações negras. No entanto, é bom frisar que ainda é uma transformação que não modifica estruturalmente o mercado, que continua sendo majoritariamente branco, com curadores, produtores, agentes, editores, distribuidores, livreiros e escritores brancos. Quem dita os rumos do mercado ainda são as pessoas brancas. Temos apenas dois expoentes, editores negros, e estes estão à frente de editoras médias. 

    De onde vem essa mudança? É um movimento que vem de mudanças sociais ocorridas neste século. No Brasil, tivemos um maior acesso de populações das camadas mais populares à universidade. Essa mudança coincide com a ampliação dos usos das redes sociais, que passaram a pautar o debate público, com temas como racismo, machismo e homofobia. Nas universidades, um pensamento decolonial ganhou força. A década passada ainda termina com o assassinato de George Floyd em 2020 e todo o fortalecimento mundial do movimento Vidas negras importam.

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    Há também uma abertura para escritores negros contemporâneos? Como eles se movimentaram para driblar o descaso histórico nesse meio? Quem se movimentou foram as grandes editoras, isso é mais marcado após a segunda metade de 2010 e se fortalece após 2020. Os escritores negros, em sua maioria, se movimentavam de forma independente, custeando os seus livros, realizando os próprios eventos, muitos eventos relacionados aos movimentos negros, em espaços alternativos. Então, há sim uma abertura, um interesse mais aguçado para a literatura de autoria negra. Diante do que era quase um descaso total, a mudança é grande, mas basta ir a uma livraria para verificar quem mais publica no Brasil. Em 9 anos de editora Malê, publiquei mais títulos individuais de autoria negra do que foram publicados na segunda metade do século XX por escritores negros. Lançaremos, entre 2024 e 2025, seis novos romancistas negros, isso o mercado ainda não tem feito.

    Isso está, finalmente, se refletindo em diversidade no mercado editorial? A professora e pesquisadora Giovana Xavier é autora de um livro com o seguinte título: Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando a sua própria história. O negro como tema ou negro como produtor de conteúdo, principalmente os que já foram testados por editoras pequenas e formaram um público consumidor, interessam para o mercado das grandes editoras. No entanto, o corpo editorial dessas editoras ainda é formado majoritariamente por pessoas brancas, assim como as associações do livro, as agências, as distribuidoras, as livrarias, as secretarias do livro municipais, estaduais… É preciso ampliar a presença dos negros nas posições de destaque e decisão no mercado editorial.

    O que você acha que falta para que o mercado editorial seja realmente diverso? Acredito que políticas públicas voltadas para a bibliodiversidade podem contribuir muito, políticas de fortalecimento das editoras pequenas, pequenas livrarias e dos coletivos literários.  Essas iniciativas indie costumam ser mais diversas. O foco dos prêmios literários continuam sendo apenas os autores e não os segmentos da cadeia do livro que fazem uma obra circular. Então, apenas criar prêmios para uma autoria específica e recompensar escritores e não se pensar em como aquela obra vai chegar até os leitores contribui pouquíssimos para a ampliação de uma presença mais diversa na cena literária. Será preciso criar incentivos para a maior presença negra no mercado editorial, se, mesmo depois de 2020, esperamos apenas que surja uma nova consciência em quem mais detém poder no mercado editorial, talvez essas mudanças estruturais nunca ocorram.

    Hoje, que futuro você vê para a Malê? A importância de se afirmar a relevância da intelectualidade negra se mantém, porque o racismo não está superado no Brasil. O investimento em escritores e escritoras negros que ainda não estão consolidados no mercado também se faz necessário e precisa ser contínuo.  Eu sempre pensei a Malê como uma comunidade de escritores negros e não negros, que se encontram porque possuem um objetivo em comum, que está acima de apenas vender livros. Eu tenho ainda esse sonho: que outros escritores compreendam a nossa proposta e se engajem na nossa luta, que antes de tudo é política, uma que vez que é essencialmente antirracista. Publicar livros pode ser algo maior que simplesmente corresponder a uma vaidade pessoal ou a uma necessidade econômica. Eu vejo que a Malê pode se transformar em uma editora tradicional, com um catálogo diverso, continuar publicando uma literatura de vozes que foram abafadas na história editorial brasileira e contribuir para a formação de profissionais negros para as mais diversas áreas do mercado editorial. 

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