A gastronomia aparece no topo do vasto panteão dos orgulhos nacionais franceses. Além da sofisticação e do sabor de seus pratos, faz sucesso no mundo todo por lidar com uma dieta capaz de garantir uma silhueta delgada, apesar das fartas calorias presentes nos croissants, dos assados repletos de manteiga, das sobremesas de massa folhada recheadas com creme — e, ça va sans dire, das doses pantagruélicas de foie gras. Tudo isso, é claro, regado com um bom vinho. Uma pesquisa recente, no entanto, põe em xeque o amor-próprio da França à mesa: a população tem se rendido cada vez mais à gordura saturada presente nas refeições das cadeias de fast-food e nos alimentos ultraprocessados. Resultado: o número de pessoas obesas praticamente dobrou e atingiu 17% em um quarto de século. Quase metade dos adultos franceses (47,3%) está acima do peso ideal, taxa de 10 pontos porcentuais maior que há 25 anos, de acordo com o Instituto Nacional de Saúde e Pesquisa Médica (Inserm) e a Liga Contra a Obesidade.
É espantoso. A situação fez os médicos soarem o alarme para uma emergência de saúde pública. A taxa de obesidade no grupo etário que vai dos 18 aos 24 anos quadruplicou desde 1997 e triplicou entre as pessoas que têm entre 25 e 34 anos. “A tendência da má alimentação é ainda mais preocupante entre os jovens”, diz David Nocca, cirurgião bariátrico do Hospital Universitário Montpellier e um dos autores do estudo. Ao que tudo indica, como reflexo do cotidiano, o apego aos hábitos tradicionais de alimentação não tem sido capaz de frear o ímpeto em trocar o boeuf bourguignon por hambúrgueres e batatas fritas e o vinho pela calórica cerveja. “A prevalência da obesidade na França era apenas questão de tempo”, diz Annick Fontbonne, pesquisadora do Inserm. “A juventude é globalizada e propensa aos apelos da indústria alimentícia.” Não à toa, o faturamento do McDonald’s na França pulou de 500 milhões de euros, em 1991, para 5,5 bilhões de euros em 2019, de acordo com os dados mais recentes, tornando-se a segunda operação mais lucrativa da empresa, atrás apenas dos Estados Unidos.
A capacidade em manter os cidadãos magros, com baixas taxas de doenças do coração, a despeito das refeições ricas em açúcar e gordura, é tão impactante e surpreendente que, nos anos 1980, o epidemiologista Pierre Ducimetière apelidou o fenômeno de “paradoxo francês”. Um robusto estudo comparativo, conduzido pela Universidade da Pensilvânia e pelo Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica, investigou a contradição a fundo e monitorou estabelecimentos como brasseries, lanchonetes, pizzarias, restaurantes chineses e unidades da rede Hard Rock Cafe nos Estados Unidos e na França. Acabou descobrindo que o mistério se deve a uma razão prosaica: os franceses comem menos de tudo (inclusive gordura e açúcar) porque costumam se servir de porções menores. Simples assim. A expansão de cadeias de lanches rápidos e suas indefectíveis promoções padronizadas, com linhas “mega” e “tamanho-família”, aos poucos foram demolindo o saudável costume.
Mas há esperança, e a Gália cercada de romanos sobrevive sem que o céu lhes caia sobre a cabeça. A taxa de obesidade na França, apesar do salto, ainda está bem abaixo da dos Estados Unidos (40%), México (33%), Reino Unido (26%) e Brasil (22%). A tendência preocupa, contudo, pelo inevitável aumento de doenças relacionadas ao peso, como diabetes e problemas cardíacos. Como resposta, o governo criou uma força-tarefa para enfrentar a situação, com atenção especial para os habitantes de baixa renda. “Pensava-se que a obesidade era uma doença dos ricos, mas isso não é mais verdade em países desenvolvidos”, diz Jean-Michel Oppert, professor de nutrição na Universidade Pierre et Marie Curie. A pesquisa mostrou que 18% dos trabalhadores de tarefas manuais, que costumam recorrer a uma dieta rica em alimentos processados por pura falta de tempo ou dinheiro, são obesos, contra apenas 10% dos funcionários que realizam tarefas administrativas.
Estar acima do peso é quase um anátema difícil em uma cultura que celebra a magreza nos meios de comunicação e capas de revista. Um recente estudo da prestigiada publicação American Journal of Preventive Medicine revela que os franceses são particularmente preconceituosos com pessoas acima do peso e costumam atribuir a condição à falta de vontade em fazer exercícios e mudar a alimentação. Sabe-se, contudo, haver outros fatores decisivos, como a genética. Iniciativas como a proibição da participação de modelos excessivamente magras nas passarelas dos desfiles de moda — outro orgulho do país — ainda são exceção. As autoridades, agora, enfrentam o árduo desafio de fazer a sociedade equilibrar as tradições à mesa, o politicamente correto e a saúde pública. A velha máxima de que “os franceses simplesmente não engordam” passou a soar tão inútil quanto falsa. E vive la France!
Publicado em VEJA de 19 de abril de 2023, edição nº 2837