E no princípio eram os cabelos. Sansão, informa a Bíblia, tinha força que não conhecia limites, atribuída às longas madeixas — aquelas que Dalila tosaria sem dó, nem piedade. No Irã de hoje, as mulheres cortam os fios como forma de protesto, desde que, em 2022, Mahsa Amini, uma curda de 22 anos, morreu depois de ser detida e agredida pela “polícia da moralidade”, por ter supostamente infringido a lei que exige delas a cabeça coberta por véus ou lenços. Na porção mais conservadora dos Estados Unidos — aquele pedaço para quem Donald Trump é Sansão — os mullets viraram recurso de estilo que os distingue dos comuns dos mortais. Convém relembrar: os mullets, de muita visibilidade nos esquisitos anos 1980, deixam a penugem mais curta na frente e evidentemente longa atrás. Moral da história: tê-los ou não tê-los, vastos ou tímidos, os fios foram sempre um manifesto político.
Eis o tema de uma mostra em Paris, Des Cheveux et des Poils, ou “Cabelos e Pelos”, no Museu de Artes Decorativas. A exposição, transformada também em livro, reconstrói a linha evolutiva das relações humanas a partir de uma seleção de 600 itens, de 1 400 até hoje. Os cortes, cores e penteados, as barbas, bigodes e a disposição de pelos nos troncos, axilas, pernas e púbis, revelam códigos sociais e culturais.
Podem ser sinônimo de feminilidade e sedução, de virilidade e força. “As pessoas se vestem de cabelo”, diz Antonio Rabadan, professor de design e negócios de moda da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), de São Paulo. “É a parte visível do corpo humano afeita a revelar identidades”. E desse movimento íntimo, a um primeiro olhar, erguem-se os padrões em sociedade, como capítulos de uma enciclopédia da civilização. Até o século XV, por exemplo, o véu — a peça de intolerância iraniana — era parte essencial do adorno feminino. Aos poucos, o item foi substituído por penteados infinitamente mais extravagantes, como aqueles cheios de volumes, cachos e enfeites elegantemente exibidos por Maria Antonieta. Arrumar o cabelo era considerado um ato tão reservado que, antes do século XX, uma senhora considerada bem nascida não poderia aparecer em público sem os cabelos devidamente domesticados.
É possível trançar cabelos e pelos como de modo a iluminar os humores de cada geração — de maneira similar ao que se faz com a trilha da moda. Nos anos 1930, celebridades e atrizes ditavam tendência com ondulações. Nos anos 1960, dominavam a cena os coques volumosos, reflexo da popularização dos salões de beleza — e não por acaso a turma hippie, do sexo, drogas e rock’n’roll, deixava tudo crescer, como forma de protesto. Vieram os anos 1980 — aqueles dos mullets, não percamos o fio da meada —, e então a roda voltou a girar, em eterno vaivém, porque assim é o caminhar do estilo entre seres humanos. E bem-vindo ao retorno das barbas ao jeitão lenhador e os bigodões emprestados do ator Tom Selleck, como se voltássemos ao século XIX, o mais peludo de todos. E vale a frase precisa, irônica e verdadeira de Coco Chanel (1883-1971): “Uma mulher que corta o cabelo está prestes a reinventar a sua vida”. E não é?
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860