Há um nó desfiado, solto — e irônico — na história da moda, o segredo velado de uma indústria que movimenta mais de 1,3 trilhão (sim, trilhão) de dólares ao ano. “Por que uma atividade destinada a alimentar — ou a explorar, a depender de como se enxerga — os sonhos femininos é gerida fundamentalmente por homens?”, indaga Vanessa Friedman, colunista de estilo do The New York Times. É universo masculino que apenas muito recentemente começou a ter rachaduras. Em 2016, a Dior nomeou a sua primeira diretora criativa. Em 2019, a Chanel levou ao topo das criações a primeira mulher desde a lendária Coco. A Hermès pôs um par de desenhistas no topo da cadeia alimentar da grife. É muito pouco, dado o tamanho do mercado. A LVMH, o maior grupo de luxo do mundo, tem apenas duas mulheres na liderança de seus catorze selos — e uma parceria com Stella McCartney. A Kering — holding francesa que inclui Yves Saint Laurent e Balenciaga — lista uma única designer na ponta.
Vem em boa hora, portanto, a magnífica exposição Women Dressing Women, no MET de Nova York, entre 7 dezembro e 3 de março do ano que vem. É uma celebração de quem furou a bolha, lá atrás, e de quem agora, enfim, puxa a locomotiva. A mostra é uma homenagem às pioneiras que ficaram anos à sombra, algumas poucas que brilharam e a nova geração empoderada. Houve nomes como Coco Chanel e Jeanne Lanvin, na primeira metade do século XX, que inventaram ondas entre as duas grandes guerras, mas que soam como exceção à regra feita de testosterona, especialmente no comando financeiro das maisons. Um dado brasileiro revela o paradoxo: dos 9,5 milhões de empregos associados à moda no Brasil, segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), 75% são ocupados por mulheres. E por que não despontam no comando?
A norma foi sempre outra: o sumiço forçado, a omissão. Tome-se como exemplo, na década de 1940, a casa Mad Carpentier, americana instalada em Paris. Liderada por Mad Maltezos e Suzie Carpentier, fechou as portas em 1957 — nunca decolou, apesar dos elegantes e cobiçados vestidos de noite, em decorrência da misoginia mal disfarçada. Um outro caso chega a ser constrangedor, o da americana Ann Lowe, que fez o vestido de casamento para Jacqueline Lee Bouvier em sua boda com o senador John F. Kennedy. O modelo de rendas e ombros largos estampou capas de jornais e revistas. Foi copiado, celebrado e vendido a rodo — a estilista, contudo, foi posta no acostamento da sociedade. O motivo: era negra. Ela frequentou, sim, a reputada Taylor Design School, mas assistia às aulas em uma sala separada, porque o colégio era segregado.
Não se trata de recontar as coisas de modo diferente, reconstruindo os ventos da moda ao gosto de hoje. Não. Foi assim mesmo que aconteceu, como retrato das relações sociais embebidas de preconceito, a começar pelo despertar de Charles Frederick Worth (1825-1895), considerado “o pai da alta-costura”, que estabeleceu seu endereço inaugural na Rue de la Paix, em Paris, e cravou a figura do homem que sabe lidar com mulheres.
Há hoje mais diversidade, embora exista uma avenida de desafios pela frente. “Foi somente a partir da segunda metade do século XX, salvo as ovelhas desgarradas, que as mulheres passaram a ser percebidas como criadoras e executivas”, diz Brunno Almeida Maia, curador de moda e pesquisador pela USP. É movimento que revela algum avanço contra o preconceito. Abre espaço para figuras muito interessantes, como a congolesa Anifa Mvuemba, designer da Hanifa, capaz de desenhar atrelada ao desenvolvimento de novas tecnologias de tecidos e sustentabilidade. E então, como quem reverencia Chanel, a pioneira, vale lembrar uma frase educativa da madame: “Uma garota deve ser duas coisas: quem e o que ela quiser”.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2023, edição nº 2871