“Qualquer maneira de amor vale amar, qualquer maneira de amor vale a pena.” A canção Paula e Bebeto foi composta por Milton Nascimento nos idos dos anos 1970, a década do amor livre, e de lá para cá despontaram variados arranjos entre casais, do relacionamento aberto ao poliamor, e dezenas de tipos de sexualidade. Até a monogamia, quem diria, passou por certa renovação: o “sabático no casamento” — termo emprestado do período em que o profissional se afasta da carreira, sem perder o vínculo com ela — é opção cada vez mais adotada, principalmente em decorrência da intensa convivência forçada durante a pandemia. Trata-se de uma espécie de férias da relação, diferente do célebre “dar um tempo”, já que o casal se separa fisicamente, mas segue compartilhando problemas, decisões e providências da vida em comum. Piers Morgan, o polêmico apresentador britânico, e sua mulher, a também jornalista Celia Walden, são a mais recente dupla a continuar casada, mas a distância — e recomendam. “Quando um computador fica lento sem motivo claro, você desliga e reinicia. O sabático no casamento é isso”, resumiu Celia em sua coluna no The Telegraph.
O termo apareceu pela primeira vez no livro Sabático no Casamento: a Jornada para Casa, em tradução livre, da americana Cheryl Jarvis, que o escreveu depois de passar três meses longe do marido (o casamento vai bem, obrigada). “Este livro nasceu do conflito entre amar meu marido e mesmo assim querer deixá-lo”, escreveu Jarvis, explicando que a necessidade de separação nada tinha a ver com frustração com o parceiro ou com a dinâmica do relacionamento. “O casamento é uma prisão invisível. Com a desculpa da intimidade, você pode usar sua pior roupa, sua pior cara, seu pior humor, e isso deteriora uma relação”, observa Mirian Goldenberg, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Uma pausa na rotina permite o reabastecimento de si para voltar ao amor da melhor forma possível, valorizando esse espaço”, completa Goldenberg, falando por experiência própria: em 2007, morou em Berlim por três meses e o marido ficou no Brasil. Ela afirma que as mulheres são mais propensas a propor o arranjo, que veem como um alívio para a dupla ou tripla jornada em casa.
Cada casal tem suas regras para tirar um sabático. Celia e Piers Morgan ficaram afastados por seis semanas e continuaram trocando mensagens (telefonemas, não) enquanto ele viajava pelo mundo produzindo uma série da Netflix e ela dedicava-se à escrita em Los Angeles. A atriz Emma Thompson, para quem “todos os casais deveriam ser obrigados a fazer uma pausa um do outro de vez em quando”, receita um ano ou mais. James Middleton, irmão de Kate, a futura rainha da Inglaterra, e sua mulher, Donna Air, experimentaram o casamento a distância quando ele foi morar em Hong Kong, a negócios, em 2016, mas não adiantou — separaram-se dois anos depois. A escritora Ruby Warrington, conhecida por advogar a sobriedade na sua geração de millennials, passou oito meses longe de Simon, após receber uma oferta de emprego em Ibiza. “O afastamento nos permitiu ser indivíduos novamente e ficou mais fácil lembrar por que escolhemos um ao outro”, reconhece.
Quando foi publicado, em 1999, o livro de Cheryl Jarvis era visto como uma ameaça aos valores familiares. Hoje em dia, ainda que perdure certa resistência a novos arranjos amorosos, a sociedade está mais aberta a experiências. “O sabático no casamento vem na esteira de outras tendências, como a escolha pelo relacionamento aberto, por atar o nó mais tarde na vida e até pela solteirice”, diz a antropóloga Goldenberg. “É um indício de que estamos caminhando para uma visão menos idealizada do casamento como fonte de toda felicidade.” O raciocínio se casa, com o perdão do trocadilho, com o refluxo do ideal do amor romântico. “Entre os anseios contemporâneos, preservar a individualidade começa a ser fundamental para a existência”, ensina a psicanalista Regina Navarro Lins. “A ideia básica de fusão do amor romântico deixa de ser atraente, por trilhar exatamente o caminho inverso.”
Não existe uma fórmula que garanta que férias do casamento fazem bem ao casal, mas as pesquisas apontam, sim, nessa direção. O americano Brian Ogolsky, professor de desenvolvimento humano na Universidade de Illinois, analisou cinquenta anos de estudos sobre “manutenção de relacionamentos” e identificou que cultivar um vínculo saudável requer reservar algum tempo para refletir sobre a relação. A consultora de negócios Isabele Moreira, 43 anos, e seu marido, Gustavo, separaram-se e voltaram, mas nessa segunda chance ela decidiu implementar intervalos regulares na convivência: duas vezes por ano, em fevereiro e em setembro, passa dez dias sozinha. O marido entende e não se incomoda de ficar com os três filhos. “Maternidade e casamento não são o centro da minha existência. Eu sou”, justifica Isabele, para quem o tempo só dela “ajuda direta e indiretamente” a relação. Em Casamento Indissolúvel ou Relação Sexual Duradoura, Wilhelm Reich, discípulo (bem mais radical) de Sigmund Freud, diz que uma união satisfatória dura, em média, quatro anos. Depois, é preciso achar opções. A conta pode não ser exata, mas, se e quando a insatisfação se instalar, talvez isso seja sinal de que a vida a dois precisa de férias.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817