Há várias versões para o apelido mais conhecido de Veneza, um dos pontos turísticos de maior afluência na Itália. Uma delas diz que passou a ser chamada de “sereníssima” graças às características da República que se instalou no arquipélago de 118 ilhas entre o fim do século VII e quase o início do XVIII. Governada por uma próspera oligarquia liberal, a cidade gozava de estabilidade econômica e social, além de ter um sistema de Justiça tão bom que qualquer forasteiro sabia que sua estadia seria “serena” — num clima de total paz e segurança. Séculos depois, tudo que os turistas menos encontram nas vielas e pontes venezianas é serenidade.
Prova inconteste são os populares vídeos de Monica Polli, a servidora italiana que ficou célebre por expor os punguistas que circulam por Veneza atrás de turistas desavisados de todas as nacionalidades: “Attenzione, pickpocket!”. Essa superpopulação heterogênea de visitantes — entre italianos de outras regiões e estrangeiros foram quase 30 milhões nos primeiros nove meses do ano passado — e de pequenos larápios é apenas um dos inúmeros problemas que se empilham diante das autoridades locais. Não por acaso, em julho do ano passado, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) recomendou que Veneza fosse adicionada à famigerada lista de Patrimônio Mundial em Perigo. De acordo com especialistas, a ação é necessária porque a Itália não faz o suficiente para proteger a cidade do turismo em massa e das mudanças climáticas que ajudam a degradar ainda mais a situação periclitante das ilhas.
Em busca de uma solução, a prefeitura de Veneza anunciou que, a partir do próximo 1º de junho, o número máximo de membros em um grupo de forasteiro será reduzido para 25 pessoas — metade da lotação de um ônibus usado para esse fim. A medida, decretada por resolução da Câmara Municipal, dentro do bojo de alteração do Regulamento de Polícia e Segurança Urbana, faz parte de uma série de modificações cujo objetivo é frear a insuportável invasão. É tanta gente, em caos evidente, que até os comerciantes locais reclamam da dificuldade em vender produtos.
Tenta-se de tudo. As autoridades municipais começarão a cobrar uma taxa de 5 euros (cerca de 26 reais) pela entrada de pessoas que visitam a cidade por apenas um dia. Também será proibido dificultar o fluxo em ruas estreitas, pontes ou locais de passagem, um clássico quando se trata desses grandes grupos de pessoas. Além disso, em decisão ruidosa, não será mais permitido utilizar megafones nas ruas venezianas, outra cena corriqueira e detestável. Dessa forma, os guias deverão contar histórias das chamadas “cas” e vielas em voz alta ou por meio de um sistema de som fechado, acessível apenas por fone de ouvido.
Não é a primeira vez, ressalve-se, que as autoridades reúnem esforços para aplicar uma tarifa regulatória. Em 2019, o Conselho aprovou a mudança, mas a chegada da pandemia de Covid-19, em 2020, decretou quarentena compulsória, o silêncio imposto pelo medo. Parecia bom, mas era triste. Contudo, por óbvio, com o término das restrições, o fluxo de viajantes renasceu. A ideia, agora, é garantir maior equilíbrio entre as necessidades dos habitantes, tanto os moradores como os trabalhadores que vêm de outras cidades, e visitantes. Esse movimento implica o atendimento simultâneo a um menor número de turistas, atalho para fazer o passeio sair mais caro. Mas os serviços, supostamente, podem vir a ter qualidade mais elevada (pelo menos é o que dizem os defensores da medida). Resta ver se a suposta elitização valerá a pena.
É possível que a vida melhore, mas é improvável que todos os problemas de Veneza sejam resolvidos, porque o vaivém de humores é parte de sua indizível beleza. Célebre morador da cidade, o americano Ezra Pound (1885-1972) a descreveu como uma “floresta de pedra crescendo da água”, e reclamou: “Sentei nos degraus da Dogana / Pois as gôndolas estavam muito caras naquele ano”. As novas exigências podem aquietar a floresta de pedra, eis a esperança — apesar da pressão econômica da indústria do turismo. Mas Veneza tem uma chance de olhar para o passado, sereníssima como jamais deveria deixar de ser.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875