Bom para cachorro: o sucesso das creches (cheias de mimos) para os pets
Humanos encontraram nos estabelecimentos um oásis para apaziguar o estresse de seus cães em lockdown. Pois eles seguem matriculados e muito bem, obrigado
O elo entre humanos e caninos vem se sedimentando ao longo de milênios e fazendo germinar inabaláveis amizades planeta afora. Não tem mais nada a ver com o princípio de tudo, lá se vão uns 40 000 anos, quando os animais se aninhavam junto ao homem para faturar uns restos de alimento, enquanto lhe serviam de proteção em um mundo repleto de armadilhas. A passagem do tempo trouxe qualidade a essa troca. Cachorros de toda a espécie foram sendo domesticados e ganhando regalias sob o teto onde eram abrigados, numa escalada de mimos em que a cada dia novas fronteiras são rompidas. Atualmente, as atenções estão voltadas para creches pensadas nos mínimos detalhes para uma parcela da matilha que pode pagar por dias repletos de atividades e estímulos. Elas existem no país desde os anos 2000, derivadas de um negócio bem mais simples e caseiro — o dos cuidadores de pets. A novidade reside no crescente leque de serviços à disposição, que se assemelham ora com os de uma escolinha infantil, ora com os de um spa de dar inveja a qualquer Homo sapiens.
Há anos esse mercado já avançava na casa dos dois dígitos. Aí vieram, em sequência, a pandemia, o isolamento, humanos e cãezinhos estressados — e estava semeado o terreno para que as creches caninas se proliferassem. “Os animais começaram a ficar agitados, apresentar quadros de ansiedade, e nesses espaços de socialização puderam extravasar a energia acumulada no lockdown”, explica a veterinária Kellen Oliveira, presidente da Comissão de Bem-Estar Animal. Não à toa, registrou-se no último ano um crescimento estimado em 200% na procura por esses oásis para cachorros, cujo preço mensal chega a 3 000 reais, a depender do turno (pode ser de doze horas) e da seleção das regalias (infinitas). Agora que a vida retorna à normalidade, com as pessoas voltando ao escritório e viajando, quem recém descobriu tais creches não larga mais delas. “Surgiu inclusive um nicho de empreendedores que alugam casarões em áreas nobres do Rio e de São Paulo para convertê-los em versões ultrassofisticadas”, conta o especialista em comportamento animal Cleber Santos, dono da ComportPet, que é também hotel, centro de adestramento e escola para preparar investidores no ramo.
Imagine um tratamento vip em que o dia mal raiou e o animal já se encontra sob os olhos atentos de uma equipe treinada não apenas para dividir as turmas por porte, mas também pelo nível de energia de cada representante da espécie e pela afinidade que demonstram entre si. Para os que não fizeram o desjejum, muitas vezes lhes é oferecido o brunch — enunciado assim mesmo —, refeição frequentemente livre da ração de sempre, que cede a vez no prato a uma mescla de vegetais e carne fresca selecionados por um nutricionista. A partir daí, o céu pode ser o limite para cães com distintas necessidades. Tutora de Fiona, uma buldogue, e Geleia, uma golden retriever, a empresária Danielle Mesquita, 28 anos, percebeu nas duas alguma agitação e achou na creche que frequentam sessões de musicoterapia e cromoterapia. Se antes a dupla latia em sinal de protesto quando ela saía à rua, hoje revela os efeitos benéficos dos agrados relaxantes que recebem. “Estão muito mais equilibradas”, afirma Danielle.
O vigor do mercado canino se ampara no contingente de cachorros das mais variadas raças no Brasil — são 54,2 milhões deles, número superior ao de crianças. Contabilizada toda a cadeia produtiva em torno dessa multidão peluda, o faturamento em 2021 cravou 51,7 bilhões de reais, 27% a mais em relação à movimentação do ano anterior, que por sua vez havia crescido 15%. Sensível aos números, Danielle Magagna, proprietária da Dog’s Ville, decidiu lançar, com o perdão do trocadilho, filhotes de sua creche paulistana por meio de franquias, que logo chegarão a Salvador e Belo Horizonte. “Não para de aparecer gente interessada em abrir sua própria unidade”, diz.
Para os donos dos cães, deixá-los queimando energia fora de casa impacta positivamente na rotina doméstica. Assim como ocorre com os humanos, o permanente convívio com outros da espécie impõe um aprendizado vital aos animais, que lapidam as habilidades da socialização. A vira-lata Madalena mudou de dois anos para cá, quando foi matriculada em uma creche pelo empresário Matheus Curcio, 27 anos. “Ela nunca mais brigou com outros cachorros nem arranjou confusão com as pessoas”, relata o aliviado dono, que gosta da possibilidade de observar on-line e em tempo real a vida boa de Madalena. Ela pode estar dando um mergulhinho na piscina ou até mesmo levando espetadelas em meio a uma sessão de acupuntura. E assim retorna para casa, como tantos de sua geração, perfeitamente em paz para exercer o papel milenar de um cão: ser o melhor amigo do homem.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786