Nasci e cresci no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, a maior favela de Minas Gerais. Minha família foi uma das primeiras a se mudar para a região, numa época em que as ruas nem sequer eram asfaltadas. Morar nessa comunidade foi fundamental para minha formação pessoal e profissional. Desde pequeno, aproveitei todas as chances que apareciam: fiz oficinas de dança, música, artesanato, esportes, teatro. E comecei a me destacar. Estar imerso nessas atividades foi uma maneira de me proteger dos maus caminhos que a toda hora se apresentam dentro de uma favela. Queria me desenvolver artisticamente, e na adolescência descobri o rap. Escrevia músicas, comprava CDs e gravava tudo ali, para depois vender. Nunca imaginaria que o conjunto dessas iniciativas, que no final formaram minha base, acabaria me levando, anos depois, a conquistar um prêmio tão prestigiado de arquitetura.
Olhando em retrospectiva, percebo que chegar tão longe exigiu foco em altas doses e um tremendo esforço para fazer diferente quando a inércia conspira para que nada mude em meio à pobreza. Depois de algum tempo tateando o universo da cultura, entendi que queria estar nele de modo mais profissional. Aluguei então um espaço para promover minhas próprias oficinas para a vizinhança e fundei o Centro Cultural Lá da Favelinha. O primeiro grande evento foi um daqueles improvisos que dão certo. Criamos o Favela Fashion Week, para agitar e trazer beleza também a uma comunidade com tantas mazelas. Comprei três máquinas de costura e criei uma linha de roupas para vender e custear a organização. Foi um sucesso e conseguimos chamar a atenção de gente importante, como o estilista Ronaldo Fraga. Hoje o Favelinha, que tinha apenas três cadeiras e uma caixa de som, virou um lugar vibrante.
Ao ganhar visibilidade, me aproximei dos arquitetos Fernando Maculan e Joana Magalhães, que tiveram a sensibilidade de imaginar um projeto fantástico de uma casa num terreno da minha família. Eles me fizeram ver algo especial onde jamais veria. Em 2019, outros arquitetos se voluntariaram para pensar soluções inovadoras no coração da favela. Como não tínhamos dinheiro, me arrisquei em uma vaquinha virtual e juntei mais de 120 000 reais para a reforma do que já estava de pé. Com a pandemia, priorizei a cozinha, para poder servir quentinhas a meus vizinhos, e muitas pessoas acabaram se envolvendo com a obra. Queria um conceito chique, mas funcional e sem ostentação. A ideia era uma casa camuflada em meio às outras, mantendo a estética tradicional dos tijolinhos sem cimento. E ficou linda, uma construção com sistema de luz e ventilação bem adaptado às elevadas temperaturas e ao cenário em volta.
Curioso como a favela atrai tanto interesse nos dias de hoje. A casa onde agora moro despertou a atenção de publicações mundo afora, inclusive do maior portal da área, o ArchDaily, que me enviou um e-mail avisando que ela estava concorrendo com construções de vários países. E assim ganhei o prêmio Casa do Ano, ajudando a tirar a favela do noticiário da violência e a colocá-la no terreno da criatividade. Planejei e desenhei vários móveis — mesas, cadeiras, armários. Ficaram tão bons que isso inflou o orgulho da comunidade. Agora que minha vida melhorou, não tenho vontade de sair de lá. Quero inspirar as pessoas, o que já acontece. Elas chegam para mim e dizem: “Quero uma casa como a sua”. Ao longo de tanta batalha, aprendi que, com trabalho e afiado senso de comunidade, dá para tirar qualquer coisa do papel.
Kdu dos Anjos em depoimento dado a Duda Monteiro de Barros e Mafê Firpo
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833