Em algumas frases, de caligrafia miúda, Oscar Niemeyer (1907-2012) marcou como ferro no concreto o seu modo de ver a arquitetura: “Não é o ângulo reto que me atrai. Nem a linha reta, dura, inflexível, criada pelo homem. O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos seus rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada. De curvas é feito todo o universo. O universo curvo de Einstein”. Serviu como manifesto, a antecipar e costurar edifícios modernistas que podem não ser aconchegantes e amigáveis, mas compõem paisagem indelével do século XX. E convém retomar o fio da meada tecido por Niemeyer, porque as curvas voltaram a ser erguidas, sutis ou evidentes, simples ou imponentes, como presente estético.
É tendência incontornável, e não há como sair pela tangente. Ela é visível nos lares, mas também nas principais exposições de decoração de interiores e arquitetura no Brasil e no exterior. Trata-se, no traço, de mais uma resposta ao período sombrio da quarentena imposta pela pandemia, em que a beleza foi derrotada pelo utilitarismo exagerado. E, então, como se não houvesse outra saída, e talvez não houvesse mesmo, deu-se como aceitável a feia desarmonia das linhas retas. Louvou-se até o brutalismo que invadiu as metrópoles já há algum tempo, desde o fim da II Guerra, e que parecia destino imutável. Não é, e bem-vindo aos novos tempos de sensibilidade e fluidez. Salve, com o fim definitivo da crise de Covid-19 no horizonte, o acolhimento e o refúgio confortável, quase amoroso.
A edição 2023 da CASACOR, evento realizado pela Editora Abril, que publica VEJA, e que acaba de ser inaugurada em São Paulo, é um passeio por ares curvilíneos redescobertos. “As peças e os ambientes encantam e enfeitam de maneira leve, solta e inusitada, sempre com movimento, algo que tem a ver com o nosso momento, tempo de muitas mudanças”, diz o arquiteto Léo Shehtman. Na mostra, ele criou um bunker de espaços sinuosos, de concreto aparente, a um só tempo solene e reconfortante. Como decoração não é apenas o que se vê, mas também o que se sente, ele arrisca uma explicação com toques de poesia: “A ideia é incapsular as memórias nas curvas do tempo”. É espírito semelhante a outro espaço da CASACOR, um living desenhado por Juliana Cascaes. As formas circulares estão por toda parte, da mesa oval ao sofá, da gravura dos Irmãos Campana à cortina assinada pelo estilista Lino Villaventura, que faz referência às ondas do mar. “As curvas nos lembram e nos aproximam da natureza, sugerindo mais aconchego ao corpo e à alma”, diz Juliana. A arquiteta Cilene Lupi, na trilha imaginada por Niemeyer, dobrou as paredes, e a elas concedeu contornos, como uma ode à sensualidade do corpo das mulheres. “Todas as formas orgânicas e curvas desenhadas nos móveis e no tapete trazem feminilidade”, descreve ela a respeito de seu espaço na CASACOR, cujo tema deste ano é justamente Corpo & Morada.
Outro indício da onda espraiada é o uso de curvas até pela frieza da vanguarda high-tech — terreno afeito a mais rigidez e que também se rendeu. A loja Pop Up-Store Hermès, de São Paulo, pôs ferramentas de inteligência artificial manipuladas por Guto Requena para desenhar curvas no mobiliário. “Esse momento tecnológico da arquitetura, que olha e mimetiza a natureza para construir o design, é a base do meu trabalho”, diz o brasileiro, vencedor de um dos cobiçados prêmios internacionais do iF Design Award, fundamental entre profissionais do bem viver, realizado em maio, em Berlim. E para não deixar dúvidas, se houvesse incertezas sobre a relevância dos semicírculos, convém olhar para uma chaise longue clássica de Niemeyer, de 1978, cujo primeiro efeito visual são as curvas, livres e sensuais. Vale, portanto, o provérbio milenar, mas sutil: “Deus escreve certo por linhas tortas”.
Publicado em VEJA de 21 de Junho de 2023, edição nº 2846